Hoje o blog faz 3 meses de existência, ainda de luto com os últimos
acontecimentos (ouço cachorros latindo na distância...). Em homenagem a todos
os espíritos caninos, mais sábios que nós, humanos, posto o conto “Mundo cão”, publicado em meu sexto livro "Diários de solidão" (2010):
Mundo cão
“Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem.”
(Jesus Cristo, segundo Lucas 23, v. 34)
Aniversário
de Tatá, titia de Teté. No quintal, tititi de Mimi, mamãe de Teté, com marido
Gugu:
- Festa pra
Tatá na nossa casa, Gugu!
- Festa é
cara! Tô duro, Mimi!
- Irmã
Teteca e Dudu, marido dela, vão ajudar a pagar!
- Festa dá
trabalho, mulher!
- Festa
reúne família, homem!
Molestado
pelo colóquio exacerbado do histérico casal, Montgomery Cliff, com sua
magnitude canina, solicita aos palestrantes uma compostura mais pacífica:
- Au, au!!!
- CALABOCA,
CACHORRO ESTÚPIDO!
- Não bate
no totó da Teté, Gugu!
Injuriado
física e ideologicamente - pelo patético apelido a ele proferido -, Montgomery
Cliff, com toda sua soberba, ironiza os algozes com censuras veladas:
- Au...
Au...
Teté entra
no quintal:
- Mamã
briga com papá?
- Não,
filhinha! Papá Gugu tá ficando surdo; mamã Mimi também.
Estupefato
com a farsa monossilábica de seus proprietários, Montgomery Cliff declama um
exultante épico caniniano para seus gentios senhores:
- Au, au;
au au au; au au au au...
- Quieto,
totó! – diz Teté.
Mais uma
vez ultrajado, desta vez pela senhorinha, Montgomery Cliff emudece e abandona o
corpo na atmosfera artificial deste cativeiro chamado quintal.
Mimi sorri
pra Teté:
- Festa pra
Tatá na nossa casa, Teté!
Gugu
quieto. Teté faz festa:
- Obá!
Gugu faz
cara feia, mas nada fala. Força sorriso na cara malvada. A tarde e os dentes de
Gugu são amarelos. Mão de Gugu dentro dos bolsos vazios.
- Vô avisá
Lalá, Lelé, Lili, Loló e Luciana! – Teté corre feliz.
Gugu diz:
- Tá...
festa pra Tatá.
Mimi reza:
- Amém,
homem!
Doutrinador
do empirismo cético, Montgomery Cliff pragueja contra a apocalíptica fatalidade
festiva:
- Au, au,
au! – mas sua transviada filosofia não alcança os ouvidos humanos.
E passam-se
dias: festa no quintal da Mimi e do Gugu. Família chega e diz:
- Viva,
Tatá?
- Viva! –
responde Tatá.
- Viva! –
repete Teté.
Encarcerado
por seus proprietários, exilado na obscuridade do canto do quintal (masmorra
que lhe é reservada em ocasiões festivas), Montgomery Cliff lamenta o ritual hipócrita dos quixotescos
boêmios:
- Caim,
caim! – comprova liturgicamente o universo fratricida dos homens.
Família
vai, família vem. Mimi, sozinha na cozinha, trabalha como ninguém. Gugu paga
tudo, Dudu é pão-duro. Família ri, família bebe, família se perde. É Didi que
dança com Dadá, prima de Dedé, esposa de Didi. É Dedé que bate em Dadá. É Chico
que xinga Zazá. É Gugu que cobra Dudu. É Teté que pisa no calo de Loló. É Lili
que joga boneca em Manuel. É bebê de Bibi que baba no sofá. Que confusão! Só
Vovó Vivi não viu e nem vai ver, porque tomou xarope e dorme sem nada saber.
Pá! Pum! Crás! Essa festa ainda mata um, essa bagunça tá demais!
Cataclismado
com o desfile caótico daquele inferno dantesco – se não bastasse o purgatório
carnavalizante do repertório massificado do aparelho sonoro! – Montgomery Cliff
clama pela reabilitação da lucidez pulverizada pela ignorância humana:
- Au! Au!
Au!
Mimi sai da
cozinha e grita contra família. Família pede desculpa. Mimi chora. Todo mundo
consola.
- Família é
fogo! – diz um.
- Família
que nada! – diz outro.
Nostálgico,
Montgomery Cliff rememora suas primaveras pueris, quando sua matriarca, ainda
viva, lhe transmitia a sabedoria da filosofia canina em latinos latidos:
-
Auuuuuuuu! Auuuuuuuu! – retruca com a Lua todos os saberes e saudades do
Infinito.
Festa
continua. Família bate palma, família canta parabéns pra Tatá. Tatá sopra
velas, família parte bolo, família come tudo.
Empertigado,
Montgomery Cliff contempla o cenário patético e zomba dos farelos humanos:
- Au, au,
au!
Fim de
festa. Família pra casa. Mimi ainda trabalha. Gugu, muito bebum, liberta o totó
de Teté. Gugu pesa a corrente, pensa na dureza; bebida faz Gugu pensar.
Diante da
aparência parva de seu senhor, Montgomery Cliff sensibiliza-se e, enternecido,
ensina ao seu estúpido dono pequenas lições de astúcia e esperança:
- Au au au,
au au au, au au au...
Ilusionado
pela inércia amistosa de seu dono, Montgomery Cliff, num ímpeto de solicitude
aos desvalidos, salta sobre seu miserável proprietário e o lambe.
- CACHORRO
ESTÚPIDO! – Gugu empurra Montgomery Cliff e vai dormir.