domingo, 19 de julho de 2020

Crônica de um seguidor do Mito Capitão Britânia: Meu vá se f... a quem profere a frase “Os tempos são outros e você TEM que se adaptar”


Uma frase que se tornou amplamente popular no século XXI e que me ressuscita gastrites milenares na alma pensante é a frase feita “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”. O modelito camaleão pra toda obra virou sucesso na moda de todas as estações, principalmente como meio de manobra para manutenções de históricos sistemas de exploração e, mais atualmente, para sustentação de métodos contraditórios como a “imunidade de rebanho” (atira-se os animais aos perigos e os sobreviventes, pelo próprio fato de sobreviverem no ambiente de provável massacre, trazem a solução vitoriosa para vencer os obstáculos impostos, fato que deveria justificar todo e qualquer sacrifício, mesmo que numeroso).
Usando-me da ironia (sim, hoje em dia, temos que explicar até o uso da figura de linguagem mais simples, antes que alguém copie e cole e diga que você disse o que não disse), a frase “Os tempos são outros e você tem que se adaptar” é ótima! Pensemos no marido, esposa, namorado, namorada, que, incompetente em sugerir uma relação mais aberta de forma sincera, é pego pelo outro/outra em flagrante relação íntima (não mais) secreta com outra pessoa. Basta declarar “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”, atira a palavra “traição” ao index do tabu contemporâneo e implanta a relação mais aberta (só para ele/ela) que, durante tempos, ele/ela não teve coragem e competência para sugerir – desmascarado(a), ele/ela mascara, com precisão, eficácia e conveniência, sua incompetência particular. Outro exemplo muito “legal” e mais comum: o patrão/patroa precisa que seus empregados trabalhem acima de uma carga horária humana para que a empresa/instituição sobreviva à voracidade autômata(dora) do mercado selvagem. Sem competência para criar meios alternativos mais humanistas e com muita impotência e bastante covardia para contradizer a agressividade robótica e imediatista do mercado, basta ao patrão/patroa declarar ao empregado/empregada “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”. Pronto: a histórica palavra “escravagismo” vai ao index do tabu contemporâneo e implanta-se a relação de trabalho moderna desassociada à exploração escancarada que ela impõe – despido(a) de soluções criativas humanistas, o patrão/patroa usa a veste dominatrix sem necessidade de que a relação de dominação/submissão no trabalho seja consensual, torna-se empreendedor/empreendedora supermoderno(a), negando suas incompetências, impotências e covardias diante das exigências maquiavélicas do mercado desumanizador. Ou seja, “Os tempos são outros e você tem que se adaptar” é ótimo... caso você precise disfarçar imediatamente uma impotência constrangedora e, claro, caso seja você o emissor (omissor) da frase, e não o receptor (receptáculo vazio, nos termos do outrora superado Skinner).
Vejamos algumas particularidades semânticas da estrutura morfossintática da frase feita “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”. Temos uma conjunção “e” que pode indicar adição, o que não ofereceria nenhuma possibilidade de reflexão; propõe uma soma de acontecimentos e ações que devem ser seguidos de modo autômato, como se fossem acontecimentos e ações naturais, que não exigem pensamentos profundos para serem realizados – vai, robô transformer, é hora de morfar sem pensar! O “e” também pode ser pensado como conjunção conclusiva, o que nos traz um paradoxo filosófico, afinal conclusões devem ser tomadas após reflexões e a conclusão trazida na sentença “Os tempos são outros e você tem que se adaptar” nos traz uma imposição, sem possibilidade de abstrações reflexivas. Agora observemos a oração “e você tem (...)”. Sintaticamente, você é o sujeito simples, ok, mas, praticamente, o “você” não é um agente ativo, precisa aceitar passivamente a ação de ter (que em nenhum momento propõe ser sinônimo de possuir, e sim de ser obrigado) em uma oração que aparenta ser ativa, mas é disfarçadamente passiva. Resumindo: “e você tem” em conjunto com “que se adaptar” não tem nada de ativo, o sujeito não age, mas recebe a ação, o que dá à sentença um caráter imperativo, é uma ordem, você é obrigado a fazer – vai, robô transformer, é hora de morfar, mesmo que você não seja robô, nem transformer, nem saiba ou queira morfar. Ou seja, até quando se analisa o período “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”, há máscara, polidez linguística, disfarce – quem profere a sentença quer mandar, se impor, e não tem nem coragem nem potência nem sinceridade de expor de forma transparente que está mandando, se impondo e exigindo a sua submissão incondicional, sem desejo de que você reflita sobre a questão.
Entendo a parte “Os tempos são outros”. Os tempos são realmente outros: discursos de ódio e de violência escancarada são amenizados com disfarces de liberdade de expressão, preconceitos enraizados deixaram de ser hipocrisias cordiais para serem considerados como ‘autênticos’ elementos do conservadorismo ‘restaurador’ ‘inerente’ em todo patriota para disfarçar a incapacidade de superarmos nossas mais nojentas misérias e mazelas íntimas que desfazem todo perfil mascarado civilizado que exibimos com extremo mau gosto, negacionismos autoritários são vistos como marcas positivas para afirmação de  identidade para disfarçar a nossa incapacidade de encarar a realidade e o quanto somos negativos e torpes para a vida consciente e pacificamente conflituosa humana, o imediatismo histérico por soluções passageiras substitui planos a longo prazo detentores de soluções mais permanentes, amparado no disfarce do mau uso do verso de Cazuza “O tempo não para” (e só uma digressão: o sumiço do acento diferencial do verbo parar na terceira pessoa tem um efeito interessante, né, pois iguala uma ação [para] que varia entre a intransitividade – independência de objetos – e a transitividade – ação direta sobre objetos - a uma preposição [para] que só serve de ponte passiva para ligar palavras e orações subordinadas, formando doces relações interdependentes). Sim, os tempos são outros e vamos de mal a pior, praticando a nova velha tendência do louvor ao retrocesso com nomes novos e amenizadores para esconder sua aberração retrógrada.
Agora “E você tem que se adaptar”? “Tem”? “Se adaptar” a isso? Ora, para todos que me atiram a sentença, vão à merda (estou usando a sua ‘liberdade de expressão’, gostou? “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”, vai ‘sifudê’ e leva o troco, viu, foi bom pra você?)! “Máquina arrogante! Adaptação não basta! Você precisa ter respeito à vida! E a coragem de ter esse respeito!” – são frases proferidas pelo personagem dos quadrinhos (referência nerd detectada) Capitão Britânia, na fase do genial roteirista Alan Moore, quando o super-herói enfrenta “O Lixo Que Andava Como Homem” em um “mundo distorcido” (história originalmente publicada em “ Marvel Super-Heroes 378”, de outubro de 1981). É originário de uma ficção, é só nerdice minha, ok, você venceu. Mas como explicar a estranha sensação de que as frases proferidas por ele não te incomodaram com aquele desconforto peculiar de que talvez um personagem fictício do início da década de 1980 pareça citar frases extremamente convenientes e de possível reflexão para a realidade atual? Como explicar que o “mundo distorcido” que um personagem fictício do início da década de 1980 estranha pode não ser tão distorcido assim, se refletirmos as situações atuais do nosso planeta ‘modernoso’? O quanto a ordem de adaptarmos a nossos tempos ‘outros’ omite a falta de respeito à vida e, principalmente, a coragem de ter esse respeito, implícita na frase feita “Os tempos são outros e você tem que se adaptar” (outra digressão: como essa frase é parceira da também idiotizante “É melhor já ir se acostumando”, né?)? Quantos Lixos que Andam como Homens nos lideram e/ou organizam os rumos de nossas vidas nos metralhando e proporcionando o compartilhamento submisso de frases feitas do tipo “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”?
Entendam, não tenho nada contra o ato de se adaptar. Mas, como bem disse o Capitão Britânia (que deve ser super-herói e fictício principalmente pelo fato de entender de distorções de realidade e por ser um capitão consciente e humanista – isto, nos dias de hoje, é raro e ainda não vi nenhum ‘novo conservador’ querendo restaurar essa consciência e humanismo), a adaptação não basta! E frases feitas nos obrigando a nos adaptar não bastam mais ainda! Adaptar é uma ação que pode servir como sobrevivência imediata para respiro de uma situação que precisa ser refletida futuramente, muitas vezes uma atitude primária necessária para superação emergente de um obstáculo imposto, mas jamais deve servir como um pressuposto permanente imbecilizante para subserviência, sub-vivência ou bajulação dos absurdos e autoritarismos aparentemente inflexíveis cotidianos.
Não necessitamos de frases pertinentes e impositórias. Necessitamos de reflexão, de respeito à vida e de coragem de ter esse respeito (sim, eu concordo com o Mito Capitão Britânia). Os tempos são outros, ok, e nós (não só você, eu ou outrem, todos nós) temos que refletir, como seres pensantes, que possuem capacidades e possibilidades de evolução, precisamos refletir, planejar, pensar, querer saber, buscar múltiplas soluções e possibilidades, e aí sim, decidir se vai se adaptar ou não – sim, é uma opção, provém do livre arbítrio (lembra disso, religioso cidadão?).
Os tempos são outros, precisamos pensar e planejar em maneiras para que esses tempos ‘outros’ não se tornem tão ou mais parasitas à vida que outros tempos outros que já vivenciamos, aí sim, com muito amor, respeito à vida e coragem para ter e lutar por esse respeito, talvez se adaptar, mas sem deixar de analisar outras posteriores saídas. Quanto aos que proferem “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”, vocês têm que se olharem nos espelhos, observarem as fragilidades e impotências furtivas implícitas em suas posições e pensarem antes de soltarem frases feitas vazias e evasivas (como vocês podem e devem julgar e se defender, usei, como usam, uma frase feita pertinente à minha argumentação e impositória para disfarçar minha impotência de prego cansado de apanhar diante de quem sempre foi martelo que nunca cansou de bater; é minha maneira polida de encerrar meu texto mandando-os à merda mais uma vez).



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