domingo, 25 de fevereiro de 2018

Poemas comemorativos: Magia Psicodélica para Gilson e George

O poema de hoje, inédito, foi escrito ontem, durante o "Zungu da Comuna", evento em comemoração ao aniversário de Gilson Gabriel e de George Harrison. A festa rolou durante a tarde de ontem até o anoitecer no quintal da Quinta das Bicas, na casa de Erli e de Gilson Gabriel. Os humanos e artistas mais convencionais podem até questionar a pessoalidade do poema, mas fazer o quê:: o poema me saiu assim, deletilírico, e é assim que o publico.


Magia psicodélica

Uma nuvem cinza de Londres
(talvez vapor do último trem
no qual Sweet Lorde George embarcou e tocou
o último solo de uma canção
que jamais compartilhou)
flerta com os céus de um bairro sereno
de uma cidadezinha qualquer
num canto do Brasil.
A tarde é nublada, mas os ventos me sorriem,
magia psicodélica do dia em que comemoramos
o aniversário de Gilson Gabriel
e de outros poetas suseranos
da arte democrática, sem absolutismos.
Hoje é o dia em que a chuva ameaça chorar,
mas se controla - nenhuma lágrima vai nos ferir;
hoje é só uma triste ameaça que não nos ataca,
Hoje é uma tarde feliz que nos embriaga.
É hora de glória, de orar
sem obrigação de rezar para um qualquer deus,
hoje somos todos deuses ateus
abençoados pela santa cerveja
que os amigos deixam sobre minha mesa.
Outro amigo me abraça,
há quanto tempo a vida passa
sem te ver?
Outro amor me afaga,
olá, folia desvairada,
é bom rever você!
É outra festa da vida sem despedidas,
é a vida insistida,
latente, infinita,
brindada com pinga com mel
sem ressaca, sem fel:
é outra tarde de incont(roll)ável alegria
na casa festiva de Gilson Gabriel.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Conto inédito para outro eterno retorno: Rosana (Ou Dançando na chuva com você)

Imagem da instalação "Rain Room",
montada no Barbican Centro de Londres

Faz um bom tempo que não venho aqui atualizar as postagens do blog. Os motivos desta vez são diversos e, ao mesmo tempo, muito parecidos com os de outras vezes: 1) motivo mais novo: estou numa fase de nova rotina de trabalho, com novos desafios e aprendizados – por sinal e graças a Deus, bastante ativa, fato que me deixa bastante atarefado; 2) motivos que são problemas que vão além de quaisquer previsões: internet que não pega – sim, a ‘bendita’ Oi  na casa de meu irmão, cujo wi fi capturo nos fins de semana em Valença/RJ, ironicamente chamada de “Velox” e “Total”, designações completamente opostas a um serviço de m... que a operadora ‘disponibiliza’ (estávamos sem internet desde 27 de janeiro e, depois de mil ligações e uma coleção de protocolos, nada se resolveu)  -, problemas de saúde com familiares, etc; 3) motivos de sempre: eu mesmo, inimigo meu – às vezes, procrastino um pouco depois de momentos febris de preparação de textos literários e/ou material de aula, rola aquela preguiça, às vezes desânimo, recolhimento existencial que se contrapõe ao virtual, etc. Bem, seja como for, estou de volta e, como sempre, com novas e velhas novidades para os amigos leitores!
Para (re)começarmos (afinal, o blog é assim como o diário que é assim como relatar experiências diárias que é assim como viver e reviver cada momento que é o essencial do ser: seguir em frente, sempre trazendo as experiências que ficaram pra trás, num eterno “restart”, passando por longos ciclos de começar e recomeçar os dias o tempo todo), bem, pra (re)começarmos, trago um brinde aos leitores fiéis: um conto inédito meu chamado “Rosana”, previsto para meu próximo livro, cujo nome provisório é “O estranho que me vejo”. Apesar de ser uma obra fictícia e curta, se encaixando melhor com o gênero textual conto, sua estrutura e inspiração flertam com a crônica pela proximidade de fatos do cotidiano e ter base em alguns acontecimentos reais (o que também aproxima o texto do relato autobiográfico, mas cuidado: é um conto, ou seja, o narrador pode parecer estar numa confissão honesta e/ou o autor está apenas desenvolvendo uma nova forma sincera de mentir, iludir o amigo leitor – por exemplo, o protagonista de outro conto meu “A última poeta”, do livro “Diários de Solidão” [2010], já postado aqui no blog, vive sendo confundido comigo, o autor, fato que me dá ares de extrema satisfação [como afirma {acho que a frase é de} Caio Fernando Abreu, todo escritor é um cretino, logo saber que sua farsa convenceu outrem só dá alegria a nós, escritores ).
Bem, seja como for, o conto “Rosana” tem tudo a ver com essas noites meio chuvosas. Espero que gostem, amigos leitores! Boa leitura e Arte Sempre!

Rosana (Ou Dançando na chuva com você)

Havia uma garoa assim caindo naquela tarde distante... Éramos dois adolescentes saindo mais cedo da escola (o professor faltara, ah! surto de hepatite abençoada!). Corríamos na chuva, em direção das nossas casas. Eu, nem delinquente, nem nerd, eu apenas eu. Você, nem a mais linda, nem a mais genial, você apenas você. Dois jovens tão jovens; você um pouco menos jovem que eu. Nem amigos íntimos, nem desconhecidos ligados pelo acaso – apenas colegas de escola, estudantes na mesma turma, quase vizinhos, saindo mais cedo da aula numa tarde chuvosa.
Em algum momento, a chuva parou. Possivelmente o céu ainda nublado estava satisfeito com sua traquinagem: estávamos encharcados e cansados de correr. Então você olhou para o chão e observou as poças que a chuva deixou no asfalto esburacado. Eu fiquei ali acompanhando seu movimento e seu silêncio, tentando imaginar o que você planejava... Então você esboçou um sorriso inicialmente enigmático, chutou uma das poças e atirou lama contra mim. Enigma desvendado: seu sorriso era pueril, de adolescente voltou a ser criança. Naquele momento, a menina mais linda, como eu jamais a vira antes.
Revidei a brincadeira, chutei outra poça mais próxima de mim, atirei lama em sua direção e você fugiu, pediu para eu parar. Sapeca, você queria sempre me atingir sem jamais ser atingida. Outro sorriso pueril de rendição, cada vez mais a menina mais linda de meu pequeno universo.
Sorrindo de volta pra você, me distraí, esqueci minha adolescência, minhas invenções de problemas, meu crescimento inconstante. A brincadeira mantinha um ritmo pueril, até que reparei o quanto estávamos molhados e que a alvura e o pano barato de nossas camisas de escola acusavam transparências, quando o uniforme ficava umedecido, como naquela hora...  Foi nesse momento que reparei pela primeira e única vez nos seus seios, o desenho perfeito deles pintado pelas gotas de chuva sobre sua camisa umedecida.
Não consegui disfarçar o olhar imprudente e safado, de novo um adolescente com hormônios descontrolados, Adão revisitando o corpo de Eva, despido do olhar sagrado. E você, não mais menina, parou de sorrir e cobriu a quase nudez com o caderno molhado, Eva ofendida pela profanação do olhar intruso de Adão. Seu movimento lento em defesa do pudor contrastava com a velocidade dos acontecimentos anteriores. Baixei os olhos, de novo um adolescente bobo, o pecador inocente mais envergonhado de todos os universos, Adão condenado à expulsão do Paraíso.
Ficamos calados por intermináveis segundos, as nuvens negras sem chuva pareciam mais pesadas que outrora, então você disse que era melhor seguirmos os nossos caminhos. A frase ganhou terríveis duplos sentidos. Subimos a escadaria para o nosso bairro com passos pesados, apenas os degraus ainda molhados testemunhavam a estranha tristeza dessa nossa via crúcis. Não havia mais leveza em nós; a inocência falecida repousava um sono intranquilo, entremeado de pesadelos, enquanto ultrapassávamos os degraus, buscando um ar, tantas vezes farto, mas, naquele momento, tão rarefeito...
Falamos pouco, quase nada, até cada um seguir seu caminho e alcançar a sua respectiva morada. Na despedida, um adeus sem graça. Nunca mais faríamos companhia um para o outro no trajeto de casa pra escola, da escola pra casa... Teríamos breves contatos superficiais na sala de aula, algumas trocas de palavras necessárias para quem convive na mesma prisão social. Nem Éden, nem maçã – de Adão herdei apenas o sonho de um paraíso perdido inatingível e muita vergonha. E você seguiu seu rumo indiferente – Eva de uma costela que não perdi, Eva de outro Adão.
O ano letivo acabou e nos formamos sem muita badalação. Algum tempo depois, você se mudou e eu também mudei. O tempo continuou passando, nos mudando e muito pouco nos esbarramos.
Hoje (tanto tempo depois!), a chuva antiga me reencontrou: numa noite de tempestade, enquanto eu bebia num bar próximo a minha casa, um amigo se aproximou, puxou assunto e, no meio da conversa, me contou que você se matou. Ele nem sabia que eu a conhecia; como é comum em cidades pequenas, meu amigo apenas me contava as parcas e trágicas novidades desse cantinho meio escondido de tudo, até de Deus. Seu nome, associado a uma morte que você própria se causou, ecoou em minha cabeça cheia de lembranças adormecidas (ah, de novo o Éden perdido e inatingível, de novo eu Adão lamentando uma parte perdida de mim, uma parte perdida que jamais perdi!).
Lembrei-me de você, Rosana, ah, seu nome calado em meus lábios envergonhados por tantos anos! Meu amigo percebeu que fiquei meio distante após a notícia de sua morte, Rosana, então tentou mudar de assunto, reclamar do mau tempo e da falta de entrosamento do time para o qual torcemos, ou melhor, sofremos. Mas eu não consegui acompanhar mais os pensamentos de meu amigo, Rosana, eu não consegui mais esquecer você. Assim como eu, a chuva insistia em tocar sua melancólica sinfonia do lado de fora do bar.
Sem mais assunto ou sorrisos, me despedi de meu amigo, saí do bar e caminhei na chuva. Vi várias poças d’água que se formavam com a tempestade... Tanto tempo passado, Rosana, e ninguém conseguiu consertar direito os buracos históricos das calçadas e do asfalto de nosso bairro. Então eles permanecem aqui, feito aquele antigo eu, feito eu agora, feito você outrora, formando poças e mais poças. Ameacei chutar uma delas, mas hesitei. Medo de chutar alguma gota do passado, medo de escorregar, medo de me machucar outra vez, medo, simplesmente medo, triste e sem explicação.
Por isso agora danço entre as poças enquanto falo com uma impossível você neste momento – sou Adão ridículo falando sozinho e evitando os vazios do Paraíso Perdido. E essa dança é tão delirante, Rosana, que, por mais que lhe conte, nunca saberei explicar se as gotas da chuva que molham meu rosto nesta hora são puras ou se estão misturadas com alguma lágrima que deixo cair... E, por mais que eu dance, lhe conte e evite explicar, Rosana, sempre caio em alguma das diversas poças, não consigo mais evitar...

Imagem da instalação "Rain Room", montada no Barbican Centro de Londres


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