Hoje em homenagem ao Dia dos Professores, classe
profissional da qual pertenço, posto o conto “A última poeta”, publicado em meu
livro “Diários de Solidão” (2010). O conto foi levemente (não confundam
personagens com autores, caros leitores, por mais próximos que ambos estejam)
inspirado na triste experiência de ver grandes talentos da sala de aula se
perderem nas mudanças do mundo, na confusão dos novos tempos, que desconsideram
o papel do professor e estimulam o fim da literatura, da arte nas salas de aula.
A narrativa torce para que a poesia permaneça em nossas salas de aula e lamenta cada perda poética que torna o ofício do professor uma melancólica via crúcis profissional.
A última poeta
O sinal
tocou e os alunos bateram em retirada no desespero do último horário, da última
aula chata de sexta-feira. Num movimento de alívio e repreensão, o professor
virou-se de costas para as carteiras e iniciou o lento ritual de apagar o
quadro. As palavras se apagavam facilmente, todo conhecimento se perdia naquele
momento derradeiro.
Sentiu
passos tímidos às suas costas, um aluno ainda estava na sala e parecia querer
falar com o professor, talvez uma dúvida; nem tudo está perdido, alguém ainda
acredita no conhecimento. Virou-se e descobriu que o aluno era, na verdade, a
aluna mais dedicada da sala de aula. Linda, perspicaz, dona de um perfume
incontrolável, ela desfilava à sua frente, com os olhos receosos de supérflua
cumplicidade. Era sexta-feira, a aula acabou, a sala vazia, só ela e o
professor...
Quatorze
anos e já despontava como poeta. O professor jamais esqueceria das composições
poéticas dela, frutos de recursos literários inconscientes e ardentes; essa
menina era a última poeta no escasso lirismo das vastas salas de aula que ele
frequentava e, às vezes, ensinava.
Quatorze
anos e ainda admirava professores como ele. Ela jamais esqueceria da poesia
madura que o professor carregava em seus gestos inconscientes e desesperados;
esse homem quer nos ensinar algo! Ela falava presente e, terminada a chamada,
ele lhe apresentava o futuro: um mundo fantástico de escritores, editores e
empresários que valorizavam todo sujeito oculto numa análise sintática, vastos
balcões de empregos que só aceitavam os detentores do conhecimento absoluto. O
mundo parecia mais justo e rico no universo do professor.
Preciso
fazer alguma coisa, o professor pensava, quebrar o silêncio ambíguo dessa sala
deserta.
- Alguma
dúvida?... – balbuciou, tentando transformar a sala inútil num templo eterno do
saber. Engraçado! Esqueceu o nome da aluna; admirava tanto os poemas dela que
quase a chamou de Florbela, Cecília, Adélia... O professor censurou-se pelos
delírios internamente, fez um olhar externo de sério guru das respostas
universais, enquanto sua alma procurava no diário da memória alguma lista de
chamada com o nome de sua última poeta.
- Não,
professor... – aproximou-se com aquela sensualidade desengonçada de quatorze
anos a engatinhar. - Eu queria me despedir do senhor... – o controle da pausa
era prova marcante do amadurecimento dela na oralidade e na vida. Faria quinze
anos daqui a dois meses...
- Como? –
interessante como o professor parecia uma grande interrogação toda vez que
apresentava uma dúvida. A menina pensava que estava ficando maluca, enquanto o
professor tentava descobrir que peça aquela jovenzinha queria lhe pregar.
- Vou mudar
de escola, professor... Meu pai arrumou emprego em outra cidade e... tenho que
ir com ele, sabe como é? – teve a ligeira impressão que algo poético se
desconstruía nos olhos do professor. Em dúvida da verdade crua ou da imaginação
pura, preferiu refrear a intimidade – Mas o senhor não se preocupe: meu pai já
me matriculou em outra escola de lá e vou continuar a estudar... – os
infinitivos revelavam obscuridade no futuro, as hesitações se voltavam contra
as rugas do homem à frente dela; um castelo de versos ruía enquanto o professor
deixava o apagador cair lentamente sobre a mesa.
O homem
abaixou a cabeça e confessou um rosário silencioso de derrotas, como naquele
dia em que gritou com a turma pedindo SILÊNCIO!... e ninguém se calou. Foi
preciso levar dois alunos para a direção, fazer ocorrência no caderno de
registros escolares, chamar atenção para as notas baixas, então o sinal tocou,
ele saiu e não disse mais nada. E suas ações e seus desejos estáticos se
repetiam agora; nem sempre há o porquê, apenas um leve baixar de cabeça sem
adeus.
- Mas saiba
que nunca vou me esquecer do senhor. – encorajou-se a poeta. Então o professor
ergueu-lhe os olhos brilhantes e sufocados de peixe libertado do aquário, mas
longe do rio, do seu habitat. E ela beijou-o no rosto, naquela covinha entre a
bochecha e os lábios, enterrando ingenuidades e acordando tímidas ousadias...
O professor
recebeu o prêmio efêmero de sua aluna com um sorriso triste de certeza carente:
ela era linda e jamais voltaria à sua sala de aula; a última poeta está
contente e perdida. Era assim a adolescência, ele pensava. Era esse sorriso
triste que a encantava, ela refletia.
Trêmulo,
incontrolavelmente trêmulo, o professor erguia suas mãos antigas num gesto de
despedida e abatimento para a jovem poeta que se perdia. A menina entendeu o
gesto patético do professor e quase deixou um cisco cair em seus olhos de
ninfeta acuada.
- Então é
adeus, professor...
- Então é
adeus, minha filha. – o pai impossível revelava todas as fraquezas de sua
prática pedagógica – Então é adeus... – arrependeu-se da anáfora desnecessária,
da cacofonia inusitada (a Deus, ah! Deus!), da derrota necessária: ela partia e
ele não podia fazer nada.
- Bem,
tenho que ir... valeu! – como era tola, versaria a poeta em produções futuras.
E ela se foi.
- Adeus,
minha última poeta – confessa o professor às carteiras solitárias daquela sala
de aula vazia, enquanto uma poeira de sonho e giz encobre a eternidade daquele
momento.
Esse conto é siplesmente lindo!!! Sempre me emociono quando o leio.
ResponderExcluirLindo professor Carlos...quanto sentimento, quanta emoção...me enche os olhos de chuva...
ResponderExcluirFinalmente encontrei esse bendito conto. Desde que comprei os livros Carlos que li esse conto e achei muito bacana. Você sabe de meu emburrecimento quanto a internet, mas finalmente descobri que olhando a lateral do blog posso ver os tais marcadores (hãhãhã - punho fechado batendo na testa rsrs).
ResponderExcluirO narrador é um misto de onisciência-pingue-pongue. Ele transita da aluna-poeta para o professor-poeta.
As relações entre professor-aluno são tão tênues e ao mesmo tempo tão profundas. Esse contato pode destruir ou construir um caminho para o aluno. No entanto, o professor não está imune a esse contato apenas como facilitador. O professor também constrói planos para os alunos e quão não é sua surpresa em ver que um fator pode desvanecer todo o planejado. Queremos tanto compartilhar nossas paixões que não percebemos esse contato também deixa marcas profundas em nós educadores. Muito embora, seja muito raro semearmos pérolas em terreno fértil. Na maioria das vezes essas pérolas são jogados aos porcos ou jogadas em terreno pedregoso ou infértil. As vezes nossa tarefa torna-se uma missão semelhante a de Sísifo.
"E ela beijou-o no rosto, naquela covinha entre a bochecha e os lábios, enterrando ingenuidades e acordando tímidas ousadias..."
Linda esse fragmento Carlos. Nosso público-alvo encontra-se numa fase da vida de pura latência física e mental. Como administrar tudo isso é um grande mistério. Inocência e pecado inconscientes ou não. Ambos estão lá e é o professor que tem de discernir. Tarefa árdua em tempo atuais meu amigo em que o apelo sexual da garotada é a regra e não a exceção.