Ontem, dia 02 de outubro, comemoramos - apesar do esquecimento da maior parte da mídia - o nascimento de Gandhi (1869), grande líder indiano que pregou a luta contra o colonialismo inglês na Índia através da resistência pacífica. Sem utilizar a violência (apesar de sofrer diversas agressões por parte dos ingleses), Gandhi liderou a conquista da independência de seu país, comprovando que podemos resistir à opressão dos poderosos sem utilizarmos armas e, ao mesmo tempo, sem sermos submissos aos dominadores. Recomendo aos leitor o excelente filme "Gandhi" para conhecerem a história desse grande herói indiano. É triste vermos, hoje em dia, a paz pregada por Gandhi sendo violentada por guerras silenciosas (há batalhas dentro de cada cidade e de cada país que nossa mídia não divulga devidamente ou só as revela de modo sensacionalista, sem preocupação com o grande número de vítima nem com a busca de esclarecimento de tais violência). Homenageio o grande Gandhi com um conto de lamento pela paz mutilada e a revolta pacífica contra o desconhecimento de nossas Histórias. O conto abaixo foi publicado originalmente em meu sexto livro "Diários de Solidão" (2010):
Gandhi no Brasil
(ou o Caminho das Índias)
“Gandhi”...
“Índia”... Essas duas palavras lhe perturbaram o sono. Júlio César direcionou
seus olhos semiabertos à frente da sala de aula: o professor explicava algo.
Sim, agora sua audição reconhecia aquele tom alto de voz – as palavras vieram
do professor.
Júlio
César é um aluno que deixa séculos de História passarem enquanto adormece em
sua carteira. Como narrador desta história, confesso que desejaria contar a
todos os leitores detalhes sobre a aula (o filme exibido, a apresentação em
data show, o debate fervoroso, a exposição oral e entusiástica do professor),
mas meu personagem Júlio César só acordou agora e de todos os valores restaram
apenas duas palavras: Gandhi e Índia.
Os
leitores hão de entender: hoje é manhã de segunda-feira e, apesar de ser menor
de idade, Júlio César bebera demais na noite anterior. Acompanhei-o na festa da
cidade, condenei sua conduta, mas os personagens nunca ouvem seu narrador. O
rapaz chegou bêbado em casa às 4 horas da madrugada e seus pais, também
embriagados, já dormiam, logo não lhe disseram nada.
6
horas da manhã, Júlio César ouvira o som do despertador, a histeria de sua mãe
(“Levanta logo, peste!”) e uma dor de cabeça que não passava. Depois o barulho
apressado do ônibus no ponto, o corre-corre para não chegar atrasado. Escola,
sala de aula, carteira, o professor, as luzes apagadas para exibição de um
filme chato e o reino de Morfeu embalava o cansado Júlio César para mais um
passeio além (ou aquém) da História.
Era
culpa do professor, só podia ser, ele falava muito alto! E nas alturas da voz
docente, Gandhi, o homem sem rosto, sorria para Júlio César. O rapaz ameaçou
pedir para ir ao banheiro, jogar um papel na cabeça do colega à frente,
interromper aquela voz alta, mas, por algum motivo, temia Gandhi e a Índia.
Júlio César temia tudo que não entendia.
Não
entendia, por exemplo, por que Cléo, a aluna na carteira ao lado, tão bonita,
tinha os braços marcados por cortes de gilete. Se Júlio César me ouvisse, eu
lhe explicaria que Cléo sofre abusos sexuais dos pais. Se eu pudesse,
denunciaria os pais de Cléo à polícia! Depois narraria uma linda história de
amor entre Cléo e Júlio César. Mas sou o narrador, não tenho voz nas minhas
próprias mentiras. Apenas choro porque meus personagens sofrem e nem minhas
lágrimas servem para apagar as linhas dessas mentiras cheias de verdades.
Saio
da escola em busca de outros personagens e encontro um homem em frente à tevê.
O jornal matinal anuncia novos testes de mísseis atômicos na Índia de Gandhi.
Indiferente, o homem muda o canal.
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