segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Solidões compartilhadas: "Meninas dos olhos", de A-Lex Gomez

Quem compartilha conosco hoje sua solidão é o renomado e talentoso escritor A-Lex Gomez, pseudônimo de Alexandre Coimbra. Elogiado por grandes escritores como Glauco Mattoso, A-lex traz uma escrita execrada pelas famílias de PIMBAS (pseudointelectuais metidos a besta e associados) (mal) ditas de 'boa' moral e 'bons' costumes. Penso que o fato de alguns considerá-los a fantástica escrita deste escritor como de mau gosto ou bizarra se deve a 2 razões: 
1. A escrita de A-Lex Gomez é extremamente contemporânea e ao mesmo tempo quase à frente de seu tempo, o que dificulta a compreensão de sua obra para leitores de cabeças ultrapassadas;
2. O fato de A-Lex Gomez expor as mazelas de nossa sociedade contemporânea é outro aspecto que assusta leitores moralistas que temem terem suas máscaras desfeitas pelos escritos realistas e soturnos deste grande escritor.
Pelas 2 razões acima, somadas ao talento cristalino de A-Lex Gomez (ou Alexandre Coimbra, para os amigos), posto hoje um conto dele de rara qualidade no mundo literário atual. Tenho certeza que os sábios leitores desse blog saberão admirar o talento refinado desse soturno e ao mesmo tempo brilhante escritor:

Meninas dos olhos

Os adultos, circunspectos e concentrados nos seus próprios assuntos evitavam olhar para a menina. Fumavam seus cigarros fumacentos. Evitavam chegar perto dela para que os seus sissibilos não arranhassem seus passivos ouvidinhos.
Quietinha, lá no canto da poltrona, havia duas horas, a menina sussurrava os seus segredos com a sua boneca. Ela e a boneca. Velhinha, a boneca, apenas tufos de cabelos ainda restavam na sua cabeça mole de borracha. As pernas, que sempre se soltavam, reencaixadas às pressas e sem paciência pela mãe, tinham os pés trocados, boneca-curupira: a perna esquerda encaixada no lado direito e a direita no esquerdo. Encardido, puído, o mesmo vestidinho que nunca fora trocado desde que a menina a herdara da irmazinha mais velha. As bracinhos não tinham mais articulação, bracinhos inertes de boneca velha. tinha sido daquelas bonecas que fecham os olhos quando postas na horizontal. Sabe aquelas? Abertos, em pé, fechados deitada. Não, não era mais, pois, quando deitada, somente um dos olhinhos verdes de vidro, o esquerdo, se fechava, o outro permanecia aberto. Nem cílios o olho estragado tinha. Boneca-aberração. A menina não via defeitos na boneca, sua única amiga e confidente.Trocavam os mais íntimos segredos. Amigas, a menina e a boneca no canto da poltrona, conversavam baixinho, uma sussurrando segredinhos no ouvido da outra. A menina deitava e levantava a boneca. Com o movimento, o olho defeituoso, verde, sem cílios, permanecia aberto. Ao término de cada história contada a menina eufórica a erguia e a velha-boneca-caolha-dos-pés-invertidos piscava torto o olhinho direito para a menina:
“Fica entre nós esse segredinho,einh?”
-Conta! Conta outro segredo! – disse a menina baixinho no ouvido da boneca.
E ouvia, com riqueza de detalhes, os segredinhos queria ouvir. A boneca sabia de muitos segredinhos. Contava tudo que a menina não sabia. Tirava o ouvidinho da boca da boneca, cabeça pra cima e gargalhava. Baixinho, pra não atrapalhar o sussurro dos adultos. Não continha seu fascínio pelos segredinhos. Levantava o queixo rindo. Rindo à beça da novo segredinho da boneca. E erguia e deitava a boneca. E uma história atrás da outra. Abraçava abraço apertado apertadinho na boneca. Amassava até a cabeça da boneca o abraço abração da menina, tamanha a pressão do “Upaaa!”. O olho direito dava meio salto pra fora da órbita, mas a cabeça voltava ao normal. E a boneca piscava pra menina:
“Fica entre nós esse segredinho,einh?”
As duas sozinhas, no canto da poltrona.
“Amigas, amigas, amigas pra seeeempre! Né?”
Uma piscada torta como resposta.
Havia uma consternação entre os adultos. Às sombras, desviavam o olhar da menina na poltrona. Dor de adulto ver a menina assim, sentada há tanto tempo, sem saber de nada. Mas não havia pra onde olhar. A névoa espessa dos cigarros e charutos e cachimbos não escondia a menina. Doía ver a menina sozinha na poltrona, lá no canto, conversando com aquela boneca velha. Doía ver no meio da sala o caixãozinho. O caixãozinho da irmã mais velha da menina. Aquela tarde tortuosa pros adultos que em grupos, roupas pretas, fechavam-se em círculos uns olhando para os outros evitando olhar para mãe. Semisserravam seus olhos e sentiam a garganta seca só de olhar o olhar da mãe, semblante sombrio.
Os adultos curvados com seus ternos pretos pareciam corvos. Cegos de de ver a dor.
A mãe sentada ao lado do caixãozinho miando a dor de mãe. Os adultos curvados em grupos olhavam só para si mesmos e seus cigarros fumacentos. Medo de ver a dor doída. Medo-dó. Dó de ver os olhos abertos da menina morta. Medo de ver a mãe olhando com os olhos mais tristes do mundo a menina morta de olhos abertos no caixão.
Os corvos tinham mais receio de olhar para a menina na poltrona com a boneca do que para a mãe ou para a irmãzinha de olhos esbugalhados no caixãozinho. Medo grande. Grasnavam assim assado, sem querer saber da cena sinistra.
Viram que a menina, isolada na poltrona com a sua boneca caolha, ainda não sabia da irmã morta no caixão.
O flash do fotógrafo despertou alguns corvos. O clarão iluminou toda a sala. Todos olharam para o caixão com a menina morta de olhos abertos. Menos a menina com a boneca.
A mãe levantou-se da beira do caixão e dirigiu-se para o fotógrafo, seca:
-Tirou a foto?
Hábito do lugar tirar foto de criança morta no caixãozinho. Hábito do lugar: as fotos de crianças mortas sempre de olhinhos abertos. Pra todos verem depois o anjinho-morto na foto, com os olhos abertos. Anjo morto, como que vivo. A menininha deitada no caixãozinho, bracinhos cruzados, lacinho na cabeça, vestidinho branco, flores secas, olhos abertos.
A mãe esperava só por isso. Pela foto. Levantou-se, foi em direção à poltrona, unhas no braço esquerdo da menina que segurava a boneca no direito.
-Vamos!
Os corvos olharam, por cima dos ombros curvados, a menina agarrada com a boneca, suplicando pra mãe:
-Deixa, mãe! Deixa a boneca contar só mais um segredo!
A mãe puxou a menina pelo braço atravessando a sala e os corvos viram as lágrimas caírem das grandes pupilas brancas da menina agarrada com a boneca. Ao saírem, a mão esquerda da menina teteava os corvos, enquanto balançando na mão direita, a boneca deu uma piscadela sacana para a menina de olhos estufados no caixãozinho.

*
 A-Lex Gomez
[ fevereiro de 2004]

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