Quem compartilha conosco hoje sua solidão é o renomado e talentoso escritor A-Lex Gomez, pseudônimo de Alexandre Coimbra. Elogiado por grandes escritores como Glauco Mattoso, A-lex traz uma escrita execrada pelas famílias de PIMBAS (pseudointelectuais metidos a besta e associados) (mal) ditas de 'boa' moral e 'bons' costumes. Penso que o fato de alguns considerá-los a fantástica escrita deste escritor como de mau gosto ou bizarra se deve a 2 razões:
1. A escrita de A-Lex Gomez é extremamente contemporânea e ao mesmo tempo quase à frente de seu tempo, o que dificulta a compreensão de sua obra para leitores de cabeças ultrapassadas;
2. O fato de A-Lex Gomez expor as mazelas de nossa sociedade contemporânea é outro aspecto que assusta leitores moralistas que temem terem suas máscaras desfeitas pelos escritos realistas e soturnos deste grande escritor.
Pelas 2 razões acima, somadas ao talento cristalino de A-Lex Gomez (ou Alexandre Coimbra, para os amigos), posto hoje um conto dele de rara qualidade no mundo literário atual. Tenho certeza que os sábios leitores desse blog saberão admirar o talento refinado desse soturno e ao mesmo tempo brilhante escritor:
Meninas dos olhos
Os adultos, circunspectos e concentrados nos seus próprios
assuntos evitavam olhar para a menina. Fumavam seus cigarros fumacentos.
Evitavam chegar perto dela para que os seus sissibilos não arranhassem seus
passivos ouvidinhos.
Quietinha, lá no canto da poltrona, havia duas horas, a
menina sussurrava os seus segredos com a sua boneca. Ela e a boneca. Velhinha,
a boneca, apenas tufos de cabelos ainda restavam na sua cabeça mole de
borracha. As pernas, que sempre se soltavam, reencaixadas às pressas e sem
paciência pela mãe, tinham os pés trocados, boneca-curupira: a perna esquerda
encaixada no lado direito e a direita no esquerdo. Encardido, puído, o mesmo
vestidinho que nunca fora trocado desde que a menina a herdara da irmazinha mais
velha. As bracinhos não tinham mais articulação, bracinhos inertes de boneca
velha. tinha sido daquelas bonecas que fecham os olhos quando postas na
horizontal. Sabe aquelas? Abertos, em pé, fechados deitada. Não, não era mais,
pois, quando deitada, somente um dos olhinhos verdes de vidro, o esquerdo, se
fechava, o outro permanecia aberto. Nem cílios o olho estragado tinha.
Boneca-aberração. A menina não via defeitos na boneca, sua única amiga e
confidente.Trocavam os mais íntimos segredos. Amigas, a menina e a boneca no
canto da poltrona, conversavam baixinho, uma sussurrando segredinhos no ouvido
da outra. A menina deitava e levantava a boneca. Com o movimento, o olho
defeituoso, verde, sem cílios, permanecia aberto. Ao término de cada história
contada a menina eufórica a erguia e a velha-boneca-caolha-dos-pés-invertidos
piscava torto o olhinho direito para a menina:
“Fica entre nós esse segredinho,einh?”
-Conta! Conta outro segredo! – disse a menina baixinho no
ouvido da boneca.
E ouvia, com riqueza de detalhes, os segredinhos queria
ouvir. A boneca sabia de muitos segredinhos. Contava tudo que a menina não
sabia. Tirava o ouvidinho da boca da boneca, cabeça pra cima e gargalhava.
Baixinho, pra não atrapalhar o sussurro dos adultos. Não continha seu fascínio
pelos segredinhos. Levantava o queixo rindo. Rindo à beça da novo segredinho da
boneca. E erguia e deitava a boneca. E uma história atrás da outra. Abraçava
abraço apertado apertadinho na boneca. Amassava até a cabeça da boneca o abraço
abração da menina, tamanha a pressão do “Upaaa!”. O olho direito dava meio
salto pra fora da órbita, mas a cabeça voltava ao normal. E a boneca piscava
pra menina:
“Fica entre nós esse segredinho,einh?”
As duas sozinhas, no canto da poltrona.
“Amigas, amigas, amigas pra seeeempre! Né?”
Uma piscada torta como resposta.
Havia uma consternação entre os adultos. Às sombras,
desviavam o olhar da menina na poltrona. Dor de adulto ver a menina assim,
sentada há tanto tempo, sem saber de nada. Mas não havia pra onde olhar. A
névoa espessa dos cigarros e charutos e cachimbos não escondia a menina. Doía
ver a menina sozinha na poltrona, lá no canto, conversando com aquela boneca
velha. Doía ver no meio da sala o caixãozinho. O caixãozinho da irmã mais velha
da menina. Aquela tarde tortuosa pros adultos que em grupos, roupas pretas,
fechavam-se em círculos uns olhando para os outros evitando olhar para mãe.
Semisserravam seus olhos e sentiam a garganta seca só de olhar o olhar da mãe,
semblante sombrio.
Os adultos curvados com seus ternos pretos pareciam corvos.
Cegos de de ver a dor.
A mãe sentada ao lado do caixãozinho miando a dor de mãe. Os
adultos curvados em grupos olhavam só para si mesmos e seus cigarros
fumacentos. Medo de ver a dor doída. Medo-dó. Dó de ver os olhos abertos da
menina morta. Medo de ver a mãe olhando com os olhos mais tristes do mundo a
menina morta de olhos abertos no caixão.
Os corvos tinham mais receio de olhar para a menina na
poltrona com a boneca do que para a mãe ou para a irmãzinha de olhos
esbugalhados no caixãozinho. Medo grande. Grasnavam assim assado, sem querer
saber da cena sinistra.
Viram que a menina, isolada na poltrona com a sua boneca
caolha, ainda não sabia da irmã morta no caixão.
O flash do fotógrafo despertou alguns corvos. O clarão
iluminou toda a sala. Todos olharam para o caixão com a menina morta de olhos
abertos. Menos a menina com a boneca.
A mãe levantou-se da beira do caixão e dirigiu-se para o
fotógrafo, seca:
-Tirou a foto?
Hábito do lugar tirar foto de criança morta no caixãozinho.
Hábito do lugar: as fotos de crianças mortas sempre de olhinhos abertos. Pra
todos verem depois o anjinho-morto na foto, com os olhos abertos. Anjo morto,
como que vivo. A menininha deitada no caixãozinho, bracinhos cruzados, lacinho
na cabeça, vestidinho branco, flores secas, olhos abertos.
A mãe esperava só por isso. Pela foto. Levantou-se, foi em
direção à poltrona, unhas no braço esquerdo da menina que segurava a boneca no
direito.
-Vamos!
Os corvos olharam, por cima dos ombros curvados, a menina
agarrada com a boneca, suplicando pra mãe:
-Deixa, mãe! Deixa a boneca contar só mais um segredo!
A mãe puxou a menina pelo braço atravessando a sala e os
corvos viram as lágrimas caírem das grandes pupilas brancas da menina agarrada
com a boneca. Ao saírem, a mão esquerda da menina teteava os corvos, enquanto
balançando na mão direita, a boneca deu uma piscadela sacana para a menina de
olhos estufados no caixãozinho.
*
[ fevereiro de 2004]
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