Hoje, 11/11/11 (!!!), Dia da Memória, publico um texto de memórias sobre meus tempos na escola, encerrando o ensino médio noturno até os dias atuais diante dos novos desafios, agora como professor, no Ensino de Jovens e Adultos. Mudei minha postagem e resolvi publicar esse texto inédito após ler a emocionante postagem "A escolha certa", da professora poeta Elayne Amorim (aí vai o link, vale a pena conferir: http://culturaletc.blogspot.com/2011/11/escolha-certa.html ). Fiz um texto de memórias reflexivo e, ao mesmo tempo, um desabafo diante das glórias e inglórias do ato de ser professor no atual ensino noturno:
Memórias noturnas
Não, meus
olhos não são tão antigos quanto parecem, estudante noturno. Minhas memórias
são ainda jovens, apesar de meus olhos carregarem uma olheira secular. Há
alguns muitos anos atrás, encerrei meu ensino médio à noite, assim como você
hoje busca completar os últimos anos do ensino fundamental. Na minha época, nem
usávamos esses termos; o ensino fundamental era chamado de 1.º grau e o ensino
médio, de 2.º grau, como se o estudo de alguém pudesse ser medido como as
temperaturas de um termômetro. Não, não queria terminar meus estudos à noite,
sabia que todos comentavam que o ensino era mais fraco, mas a necessidade
mandou em meu destino: trabalhava durante o dia, precisava do dinheiro para
sobreviver e, mesmo temeroso dos rumos da minha educação, me matriculei numa
turma noturna. Tinha 16 anos quando fiz esta escolha.
À
noite, conheci uma nova realidade, revi matérias que já havia visto em anos
anteriores no ensino diurno, recebi novos conteúdos e convivi com pessoas mais
velhas (eu era o mais novo da turma). Muitas coisas que aprendi se esvaíram de
minha mente, escorregaram no ralo do meu esquecimento, o que não foi privilégio
do ensino noturno, pois vários conteúdos do ensino diurno também sofreram o
mesmo desprezo de minha memória (às vezes, tais ensinamentos retornam como
flashes e sempre que vejo alguém estudando tais matérias, tenho aquela sensação
de dejavú – sim, eu já vi ou ouvi isso em algum lugar). Mas passei, de forma
regular, terminei o ensino médio; nada que me encha de louvor, não fui
brilhante, deu pro gasto e não vou maquiar esse fato.
O
que não esqueço é do meu cansaço e do esforço que eu fazia pra manter meus
olhos abertos diante de um quadro negro como a noite. Lembro que meu patrão
permitia que eu estudasse a contragosto, pois achava que o estudo fazia mal
para seus “peões” mal remunerados. Mas os tempos estavam mudando, as leis da
oferta e procura de emprego começavam a exigir cada vez mais empregados graduados
e meu patrão pouco podia contra o novo pensamento do mercado de trabalho. O
máximo que podia fazer o meu patrão fez com maestria: exigia produção dobrada e
me segurava até o último minuto na minha área de trabalho. Suportei suas regras
e acho que foi o melhor pra mim: hoje sou professor, a maioria dos grandes empregadores
vira as costas para candidatos com ensino médio incompleto e aquela empresa na
qual trabalhei não existe mais; fechou em meio a dívidas e erros de
administração (talvez algum historiador ou economista relembre dela em alguma
tese sobre empreendedores que não acompanharam as mudanças do mercado e se
perderam na nova economia brasileira). Naquela época, o Plano Real tinha pouco
tempo de implantação e parecia-me que meu patrão não caíra na real dessa
inovação econômica.
Mesmo
esgotado, me lembro do gesto de cada professor, dos olhares também cansados e
apreensivos de meus colegas de sala, do ar derrotista que alguns professores e
alunos deixavam, como se, às vezes, somente o diploma interessasse e quanto
menos conteúdo melhor. Vi muitos professores e alunos confessarem um martírio
de fracassos e classificarem o fim do ano letivo como o encerramento de um
castigo. Engraçado que não me lembro do rosto de nenhum deles – suas faces se
perderam nos confins dos tempos como pesadelos que, por um momento, te atormentam
e, depois, passam sem deixar rastros. Me lembro sim da forma ousada e exigente
que a professora de português dava suas aulas, me lembro do brilho nos olhos no
rosto do estudante que sempre frequentava as aulas com um uniforme de fábrica
quando finalmente conseguiu compreender um complicado conteúdo de Física, me
lembro da concentração do outro nos dias de provas, do sorriso satisfeito da
moça que confessou estar ali pra mexer com a mente dela, porque “cabeça ociosa
é oficina do demônio”, me lembro que meus poemas ainda eram crianças que
extraíam de cada visão uma esperança de lirismo.
Por
que relembro de tudo isso nesse momento?
Talvez porque ontem não encontrei poesia quando lecionava em sua sala de
aula, havia muita baderna e o barulho espanta qualquer suspiro de diálogo por
um novo sonho, por um novo mundo, por algo melhor. Quando ouço os gritos,
motins e ofensas contra mim, contra o outro, contra o conhecimento, contra a
convivência, meu corpo cai no abismo do silêncio e minha alma afunda nos labirintos
da mim mesmo, à procura da paz perdida. Me desculpe se minhas lembranças
invadem o seu presente, estudante noturno... são apenas páginas empoeiradas de
meu passado cujo livro mantenho aberto pra não tropeçar na violência dos novos
tempos, são fragmentos inofensivos da minha memória que mantêm viva uma solução
pacífica para os conflitos das diferenças de nossos tempos.
Texto de grande beleza e lirismo! Sim, é um desafio a nossa profissão, mas apesar das tormentas, ela traz sensações inigualáveis para nossa vida, são tantas pessoas que passam pelas nossas mãos e é tão bom quando vemos que lá na frente elas venceram na vida. Tenho muito boas lembranças das minhas antigas turmas do noturno. Pessoas cansadas com fome de aprender, de crescer, de evoluir... Sim - repito rsrsr - Eu me sinto gratificada.
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