Chegar a
mais um feriadão prolongado poeticamente poderia significar apenas deixar
Teresópolis, a cidade onde eu trabalho e que gosto, apesar dos poucos laços
além dos profissionais (tenho poucos, mas ótimos amigos por lá – por exemplo, o
Max Vitor e a Natasha Kimus, que há certo tempo, devido à correria do dia a
dia, não os vejo), e chegar a Valença, minha cidade quase natal, berço da minha
poesia e que eu idolatro como musa maior, apesar de todos os crimes que os
governantes municipais cometem ao ferirem a beleza da “princesinha da serra”.
Chegar a mais um feriadão poderia significar apenas isso, mas a realidade
sempre nos dá presentes cobrados com requintes de crueldade: sair de
Teresópolis e chegar a Valença exige uma longa viagem de ônibus de, no mínimo,
6 horas de duração – isso caso você consiga o milagre de que os horários de
chegada do Teresópolis x Rio coincidam com os horários de partida do Rio x
Valença (em meus seis anos de idas e vindas, só consegui esse feito umas 6
vezes, ou seja, aproximadamente uma vez por ano). Mudaram as estações e nada
mudou, amigos leitores: aqui estou eu mofando na Rodoviária Novo Rio e a velha
espera me consome – alivio isso escrevendo agora para vocês.
Como eu
disse, a viagem dura no mínimo 6 horas, mas, na maioria das vezes, o tempo
médio de viagem fica entre 8 horas / 8 horas e meia, devido não só à espera,
mas ao tráfego (o Rio de Janeiro sempre deixa um engarrafamento guardado para
as minhas viagens, é incrível; sem contar que a Rodoviária Novo Rio é uma das
únicas da América Latina que consegue ter engarrafamento dentro dela, devido a
grande quantidade de ônibus que chegam nela e as obras intermináveis que ela
nos proporciona, sempre se desculpando pelo transtorno e para melhor nos
atender, ai, ai...), a vagareza, as surpresas (o pneu do ônibus fura, o ar
condicionado está ruim, o número de lugares é menor que o número de passagens
vendidas), então é esperar outro e mofar, mofar...
Todos esses
espetáculos do caos rodoviário em cada viagem ao qual me lanço me proporcionam
aquela irritante sensação de perda de tempo, de surgimento de novos cabelos
brancos, o mundo todo em movimento e eu mofando. Por isso, criei a arte de
dormir em ônibus – dormindo não sentiria o tempo passar e ainda economizaria
horas posteriores nas quais gastaria no reino de Morfeu, deus grego e soberano
do sono. É, na teoria, minha arte mereceria o troféu empreendedor de qualquer
firma de economia de tempo, porém, como sabemos, sou humano e, logo, cometo
erros por não ter o cálculo exato de uma máquina, como um despertador, por
exemplo. E a vida é sacana, meu amigo; quem não sabe disso é porque está sendo
sacaneado direto e só sorri pra ela por ser otário de não perceber as peças que
a vida nos prega.
Voltando à
arte de dormir em ônibus: minha artimanha pra ganhar tempo me proporcionou
horas e horas de sono desconfortável, em poltronas reclináveis e torturadoras
do bem estar do artista dorminhoco que vos fala. Mas dormi, dormi muito! Aí que
vêm os desastres dessa arte, apontados nos episódios abaixo:
a) Episódio I - Tornei-me um
jedi: Uma vez, acordando após praticar a arte de dormir no ônibus Teresópolis x
Rio, o passageiro ao meu lado me disse: “Chegamos! Boa sorte e que a força
esteja com você!”. Temo ter falado dormindo com o anônimo mestre jedi. A arte
de dormir tem esse risco: você pode ser surpreendido por um sonambulismo, um
lado seu que você desconhecia completamente. Saí do ônibus me sentindo um Luke
Skywalker amarrotado, preparado pra enfrentar o Darth Vader rosa, ou seja, o
ônibus Valença x Rio da Util, que, é claro, só sairia da rodoviária duas depois
de minha chegada – já avisei aos leitores: os horários quase nunca coincidem.
b) Episódio II – O império
contra-ataca: Às vezes, por se tratar de um transporte coletivo, esbarramos com
seres inimigos da arte de dormir em ônibus. Esses seres creem na obscura força de sua
arte narrativa e memorialística e desatam a contar a você todas as histórias da
vida dele. Eles falam, falam, falam cuspindo, cutucam, dão tapinha nas costas e
sua arte de dormir em ônibus está arruinada, condenada ao esquecimento nessa
viagem. E pode piorar: esses seres das trevas às vezes abusam da impunidade e
ficam no celular ouvindo músicas populares (entre eles) ou assistindo a novela
da Globo (sempre que vejo o símbolo dessa emissora me lembro do terrível Globo
da Morte da Guerra nas Estrelas I) sem fone! Não há arte jedi de dormir em
ônibus que consiga vencer tanta agressividade e desrespeito aos direitos universais
humanos de conviver em paz com os seus próximos!
c) Episódio III – O retorno do
jedi: Nem sempre consigo a poltrona voltada para a janela, onde encosto meu
rosto e batendo suavemente a cada solavanco do ônibus vou exercendo minha arte
de dormir. Logo, quando isso não acontece, fico na poltrona do lado do corredor
e, como a tendência é sempre tentar encostar em algo, quando caio no sono acabo
caindo também nos ombros do passageiro vizinho e desconhecido. Às vezes recebo leves
cotoveladas – que não me afetam, pois estou acostumado às pancadas de minha
cabeça na janela do ônibus –, sermões, cotoveladas mais ferozes a empurrões. Me
recupero dos sustos e tento exercer minha arte de dormir em ônibus sem ferir a
liberdade dos estranhos vizinhos.
d) Episódio IV – A ameaça
fantasma: A arte de dormir pode ser desastrosa se não estiver preparado. Quando
estou realmente muito cansado (às vezes, saio direto do trabalho pra me
aventurar em viagens pelos ônibus do Brasil), durmo demais. Esse fato não teria
nada demais se todos os motoristas se lembrassem de conferir que todos os
passageiros tenham descido do ônibus. Mas eles nem sempre lembram. Resultado:
já acordei dentro de diversas garagens sem saber nem mesmo quem eu sou e como
vim parar ali. Logo que cai a ficha, o guerreiro deve levantar-se, aceitar ser
motivo de chacota entre os funcionários da garagem e pegar um ônibus que o leve
de volta ao destino ultrapassado a milhas e milhas dali.
e) Episódio V – A guerra dos
clones: Outro fato perturbador é quando o seu passageiro vizinho também comete
a arte de dormir. E o pior: ele consegue dormir antes de você e ainda ronca
demais. Nessas horas, me concentro, mas nem sempre consigo isolar o estrondo
adversário – nesses casos, me rendo à velha sensação de perda de tempo.
f) Episódio VI – A vingança dos
Sith: Esse é o episódio mais tosco de minha saga. De tanto exercer a arte de
dormir em ônibus, consegui um feito inédito: após chegar a Valença, virar a
noite de bar em bar, dormi no primeiro circular para a minha casa. E a viagem,
que duraria míseros 15 minutos, duraram 3 horas. Fui e voltei diversas vezes,
até que o motorista – já cansado da presença deste sonolento passageiro – me
intimou que eu finalmente descesse. Pronto: caí no poço das fofocas de meu
bairro como um homem perdido, levado pelos vícios, Anakin Skywalker caindo no
poço da maldade e virando Darth Vader. Custei a dar continuidade ao ritual de
dormir em ônibus após isso, mas, hoje, mais velho e experiente, pago menos
micos em minha arte jedi de ‘sonolescência’.
E os leitores podem reparar que
modifiquei um pouco minha arte: agora não durmo o tempo todo – uso parte do
tempo para escrever, até que o notebook descarregue e se dirija ao reino de
Morfeu comigo. Advirto aos adolescentes que não tentem a arte de dormir em
ônibus, quando estiverem em excursões escolares, pois, nesse caso, o império do
mal – sim, nossos colegas de escola – podem abusar de seus feitos, ora passando
pasta em seu rosto, ora fotografando e postando fotos horrendas do artista em
estado de sono profundo, ora fazendo coisas terríveis e inimagináveis quando
você, jovem jedi, dedica-se à arte sonolenta.
Bem, estou de volta a Valença;
mais uma vez o percurso foi arrastado e cansativo, um pouco de angústia pelo
tempo perdido de viagem, mas ainda temos todo tempo do mundo: dormindo ou
acordado, é hora de curtir o feriado.
Ah,Carlos, só mesmo um mestre na arte de dormir em ônibus para arrancar gargalhadas de mim numa quinta à noite depois de um dia PRA LÁ DE CANSATIVO...é muito bom passear por seu blog e deliciar com suas OBRRAS DE ARTE...estou ficando viciada.Parabéns!!!!!
ResponderExcluirKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK e ainda faltou história nessa sua vida em trânsito! Ótimo texto, ainda bem q depois de tudo no fim das contas vc sempre chega em Valença_mesmo cansadinho- rs rs rs
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