domingo, 22 de setembro de 2013

Sangues Bons, Flagras, Carrões e Um Furo na Mão: Ingredientes para o conto de Apenas Um Beijo

Uma verdadeira febre tomou conta dos telespectadores brasileiros:  a novela “Sangue Bom”, da Rede Globo, e, principalmente, o personagem Fabinho, interpretado por Humberto Carrão. Minha mãe, minha namorada, meus vizinhos, todo o universo teen fanático por belos atores e boas novelas, ninguém escapou dessa febre. Há pouco tempo, nem minhas idas à internet escaparam da propagação dessa febre. Me deparei com a notícia “Humberto Carrão assume fim de namoro a amigos e investe em Sophie Charlotte durante o Rock in Rio”. Seria mais uma notícia de fofoca global que me passaria batido, se não fossem alguns muitos comentários de fãs fanáticas da novela: como Sophie Charlotte interpreta a vilã Amora, que faz toda espécie de maldade com o personagem Fabinho, de Humberto Carrão, algumas muitas fãs esculachavam a possibilidade de uma relação amorosa entre os atores, como se personagens e atores fossem a mesma pessoa. Tal reprovação imprópria da atitude de Humberto Carrão não diminuíram o prestígio do ator e de seu personagem na novela “Sangue Bom”. Porém, fiquei me perguntando: e se o acontecimento tivesse afetado o sucesso do personagem? O que aconteceria? Sabemos que muitas vezes os fãs mais fanáticos de novela já cometeram loucuras com atores por confundirem o personagem com a pessoa. Me lembrei do conto “O homem do furo na mão”, do contista brasileiro de realismo fantástico Ignácio Loyola Brandão, no qual um homem, ao apresentar um furo na mão, perde todo o prestígio social que possuía.
Inspirado nisso tudo, criei um conto sobre um ator que perde o prestígio ao beijar uma atriz, ironicamente usando a personalidade do personagem Fabinho, de Humberto Carrão – sim, amigos leitores, a febre está me atingindo rs É narrado em primeira pessoa (ou seja, o personagem que te conta a sua história) e tem o tom de uma entrevista, onde o interlocutor / entrevistador (para quem o personagem conta sua história) tem suas falas omitidas.
Pra pensarmos bem, antes de levarmos os personagens dos outros pra cama! 

Foi apenas um beijo
(Roberto Mourão declara para as fãs: “Foi só um beijo”)

Foi apenas um beijo. O que você sente quando beija alguém? Um calor, um tesão, desejo de beijar mais, sei lá, mas nada demais. Foi só um beijo, pô. Nem doce, nem amargo. Só um beijo...
Sobre como comecei? O de sempre: playboy, bonitinho, pinta de modelo e tals, um certo talento pra decorar as coisas e interpretar cenas, maquiar mentiras como se fossem verdades, pressão dos pais pra trabalhar e uma imensa vontade de ralar sem suar demais. Não, não é vagabundagem não, que isso, não me entenda mal. É que eu tinha talento, eu sabia que eu era capaz. Então veio o teste pra novela, passei fácil, tinha todo o perfil – branco, bonito, corpo bem cuidado -, somado ao talento nato necessário para o papel, eu sabia que estava no caminho certo. Rá, rá! Sei, queria que eu falasse que ralei muito, passei fome; dificuldades e fome vendem bem, né? Mas então bota aí: com muita dificuldade, passei no meu primeiro teste. As fãs – pelo menos, as que me sobraram como fãs – vão gostar. O pessoal gosta de ver a vida como uma novela, né, todo mundo gosta de uma mentira sincera. Mas não é. Mesmo assim, bota que eu ralei muito aí! É... o pessoal gosta duma ficção; melhor deixarmos a verdade em off. As fãs que me sobraram vão gostar, quem sabe até outras voltem... É...
Então, depois de conseguir entrar no elenco, aí sim ralei, entrei no personagem, eu não era mais o Roberto Mourão, eu era o Toninho da novela Carne Pura, o Toninho da Carne Pura era eu, meu papel ganhou logo destaque, virei recordista em receber cartas de fãs, sucesso total, capa de todas as principais revistas do país, deu tudo certo, deu tudo certo demais...
O que esperavam de mim? Eu me empolguei com todas aquelas festas, luzes e holofotes em cima de mim. No começo, estranhava todos aqueles papparazzis, as câmeras sempre flagrando o momento em que saía de casa, em que chegava, em que ia à praia, em que ia passear com os colegas; em cada momento que eu respirava havia alguém me observando. No começo, eu estranhava, mas é como eu disse antes: sempre tive talento nato pra o que eu estava fazendo. De tanto me destacarem, todos aqueles flagras de câmeras, toda a perseguição de fãs viraram rotina, fui me acostumando e, confesso, acabei até gostando.
Não pensava que... sei lá, eu estava tranquilo, meu papel na novela ia de vento em polpa; comecei como vilão, mas a pressão das fãs fizeram com que o autor da novela me redimisse, me tornasse o herói maior, por mais anti-herói que isso fosse. Sabe aquela sensação do mundo em suas mãos, um universo de estrelas todo só pra si? E tudo tão leve, tão fácil, como se você pudesse realizar todos os seus sonhos num piscar de olhos, sem me machucar.
Então veio aquela festa, todo mundo sorrindo e se divertindo, o mundo todo em minhas mãos num piscar de olhos. E ela deu condição: Suzi Bronté era minha colega de trabalho, fazia a cruel Pitanga, a vilã da novela Carne Pura, todo mundo sabia disso, toda fã fanática pela novela odiava a personagem dela, mas a Suzi, a Suzi pessoa, era linda, simpática, encantadora... e estava me dando condição. Sorriso pra lá, sorriso pra cá, um bom bate-papo, nossos rostos próximos, não resisti: beijei-a. E, por um momento, só havia eu e ela, saca, eu, ela e o mundo em minhas mãos. Nem percebi os milhares de flashs de câmeras à nossa volta, nem percebi que o mundo me caía das mãos...
O resto da história todo mundo sabe: a foto em que “Toninho beija Pitanga” apareceu em todos os principais jornais e revistas de fofocas, revolta das fãs; por mais que eu ralasse na interpretação do personagem, ele voltava a ser vilão e o autor da novela, pressionado, diminuía a minha participação a cada capítulo; de protagonista, retornei ao papel de coadjuvante até quase desaparecer. A mídia foi me esquecendo; Suzi Bronté sempre que esbarrava comigo no trabalho ou fora dele me olhava constrangida, aquele meio sentimento de culpa, muito estranho sentirmos culpa pelos pecados que não cometemos. Ela continuava linda, mas agora me era inacessível. Não, nenhuma paixão por ela, apenas uma sensação de estar perdendo alguma coisa que não conseguimos entender por quê. Foi apenas um beijo... Eu não sabia que... As revistas foram me esquecendo, as câmeras que me cercavam e eu não percebia; agora não havia mais o que não perceber. Meus pais me ligam todos os dias, têm medo que eu faça uma bobagem, sei lá, mas não vou fazer, só não quero voltar pra casa deles. Não logo agora que tinha me acostumado a morar sozinho... Mas tudo anda meio estranho demais. Foi apenas um beijo pô, entende meu desespero? Sei que não pareço desesperado, mas não estou interpretando; o desespero é suave, entende, meio que aquela canção do Capital Inicial: “só um leve desespero que me leva, que me leva daqui” Engraçado... Acho que estava tocando essa música quando beijei a Suzi. Nada romântico, né? A nossa cabeça tem umas coisas estranhas que não consigo entender. Não me lembrava da música quando beijei a Suzi, na hora não estava ouvindo nada, mas agora a música não sai da minha cabeça, quando lembro daquela cena. Cena? Engraçado chamarmos de cena o que acontece em nossa vida, parece que estamos na novela. É... Mas não estamos... Foi mal, tô viajando.

Ah, você tem que ir? Tudo bem; bom demais te ver aqui. Há quanto tempo não dava entrevista pra você? Uns dois meses, né? Sim, com certeza a sua revista vai crescer, deve estar sendo a maior ralação; imagino que deve ser difícil pra você, sair assim de uma revista grande e montar a sua própria. Tem que ter coragem; não sei se seria capaz de fazer o que você fez. Mas é isso aí, precisando sempre de qualquer força estou aí. Abraços, cara, e fique bem...


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