Uma verdadeira febre tomou conta dos telespectadores
brasileiros: a novela “Sangue Bom”, da
Rede Globo, e, principalmente, o personagem Fabinho, interpretado por Humberto
Carrão. Minha mãe, minha namorada, meus vizinhos, todo o universo teen fanático
por belos atores e boas novelas, ninguém escapou dessa febre. Há pouco tempo,
nem minhas idas à internet escaparam da propagação dessa febre. Me deparei com
a notícia “Humberto Carrão assume fim de namoro a amigos e investe em Sophie Charlotte
durante o Rock in Rio”. Seria mais uma notícia de fofoca global que me passaria
batido, se não fossem alguns muitos comentários de fãs fanáticas da novela:
como Sophie Charlotte interpreta a vilã Amora, que faz toda espécie de maldade
com o personagem Fabinho, de Humberto Carrão, algumas muitas fãs esculachavam a
possibilidade de uma relação amorosa entre os atores, como se personagens e
atores fossem a mesma pessoa. Tal reprovação imprópria da atitude de Humberto
Carrão não diminuíram o prestígio do ator e de seu personagem na novela “Sangue
Bom”. Porém, fiquei me perguntando: e se o acontecimento tivesse afetado o
sucesso do personagem? O que aconteceria? Sabemos que muitas vezes os fãs mais
fanáticos de novela já cometeram loucuras com atores por confundirem o
personagem com a pessoa. Me lembrei do conto “O homem do furo na mão”, do
contista brasileiro de realismo fantástico Ignácio Loyola Brandão, no qual um
homem, ao apresentar um furo na mão, perde todo o prestígio social que possuía.
Inspirado nisso tudo, criei um conto sobre um ator que perde
o prestígio ao beijar uma atriz, ironicamente usando a personalidade do
personagem Fabinho, de Humberto Carrão – sim, amigos leitores, a febre está me
atingindo rs É narrado em primeira pessoa (ou seja, o personagem que te conta a
sua história) e tem o tom de uma entrevista, onde o interlocutor /
entrevistador (para quem o personagem conta sua história) tem suas falas
omitidas.
Pra pensarmos bem, antes de levarmos os personagens dos
outros pra cama!
Foi apenas um beijo
(Roberto Mourão declara para as fãs: “Foi só um beijo”)
Foi apenas um beijo. O que você
sente quando beija alguém? Um calor, um tesão, desejo de beijar mais, sei lá,
mas nada demais. Foi só um beijo, pô. Nem doce, nem amargo. Só um beijo...
Sobre como comecei? O de sempre:
playboy, bonitinho, pinta de modelo e tals, um certo talento pra decorar as
coisas e interpretar cenas, maquiar mentiras como se fossem verdades, pressão
dos pais pra trabalhar e uma imensa vontade de ralar sem suar demais. Não, não
é vagabundagem não, que isso, não me entenda mal. É que eu tinha talento, eu
sabia que eu era capaz. Então veio o teste pra novela, passei fácil, tinha todo
o perfil – branco, bonito, corpo bem cuidado -, somado ao talento nato
necessário para o papel, eu sabia que estava no caminho certo. Rá, rá! Sei,
queria que eu falasse que ralei muito, passei fome; dificuldades e fome vendem
bem, né? Mas então bota aí: com muita dificuldade, passei no meu primeiro
teste. As fãs – pelo menos, as que me sobraram como fãs – vão gostar. O pessoal
gosta de ver a vida como uma novela, né, todo mundo gosta de uma mentira
sincera. Mas não é. Mesmo assim, bota que eu ralei muito aí! É... o pessoal
gosta duma ficção; melhor deixarmos a verdade em off. As fãs que me
sobraram vão gostar, quem sabe até outras voltem... É...
Então, depois de conseguir entrar
no elenco, aí sim ralei, entrei no personagem, eu não era mais o Roberto
Mourão, eu era o Toninho da novela Carne Pura, o Toninho da Carne Pura era eu,
meu papel ganhou logo destaque, virei recordista em receber cartas de fãs,
sucesso total, capa de todas as principais revistas do país, deu tudo certo,
deu tudo certo demais...
O que esperavam de mim? Eu me
empolguei com todas aquelas festas, luzes e holofotes em cima de mim. No
começo, estranhava todos aqueles papparazzis, as câmeras sempre flagrando o
momento em que saía de casa, em que chegava, em que ia à praia, em que ia
passear com os colegas; em cada momento que eu respirava havia alguém me
observando. No começo, eu estranhava, mas é como eu disse antes: sempre tive
talento nato pra o que eu estava fazendo. De tanto me destacarem, todos aqueles
flagras de câmeras, toda a perseguição de fãs viraram rotina, fui me
acostumando e, confesso, acabei até gostando.
Não pensava que... sei lá, eu
estava tranquilo, meu papel na novela ia de vento em polpa; comecei como vilão,
mas a pressão das fãs fizeram com que o autor da novela me redimisse, me
tornasse o herói maior, por mais anti-herói que isso fosse. Sabe aquela sensação
do mundo em suas mãos, um universo de estrelas todo só pra si? E tudo tão leve,
tão fácil, como se você pudesse realizar todos os seus sonhos num piscar de
olhos, sem me machucar.
Então veio aquela festa, todo
mundo sorrindo e se divertindo, o mundo todo em minhas mãos num piscar de
olhos. E ela deu condição: Suzi Bronté era minha colega de trabalho, fazia a
cruel Pitanga, a vilã da novela Carne Pura, todo mundo sabia disso, toda fã
fanática pela novela odiava a personagem dela, mas a Suzi, a Suzi pessoa, era
linda, simpática, encantadora... e estava me dando condição. Sorriso pra lá,
sorriso pra cá, um bom bate-papo, nossos rostos próximos, não resisti:
beijei-a. E, por um momento, só havia eu e ela, saca, eu, ela e o mundo em
minhas mãos. Nem percebi os milhares de flashs de câmeras à nossa volta, nem
percebi que o mundo me caía das mãos...
O resto da história todo mundo
sabe: a foto em que “Toninho beija Pitanga” apareceu em todos os principais
jornais e revistas de fofocas, revolta das fãs; por mais que eu ralasse na
interpretação do personagem, ele voltava a ser vilão e o autor da novela,
pressionado, diminuía a minha participação a cada capítulo; de protagonista,
retornei ao papel de coadjuvante até quase desaparecer. A mídia foi me
esquecendo; Suzi Bronté sempre que esbarrava comigo no trabalho ou fora dele me
olhava constrangida, aquele meio sentimento de culpa, muito estranho sentirmos
culpa pelos pecados que não cometemos. Ela continuava linda, mas agora me era
inacessível. Não, nenhuma paixão por ela, apenas uma sensação de estar perdendo
alguma coisa que não conseguimos entender por quê. Foi apenas um beijo... Eu
não sabia que... As revistas foram me esquecendo, as câmeras que me cercavam e
eu não percebia; agora não havia mais o que não perceber. Meus pais me ligam
todos os dias, têm medo que eu faça uma bobagem, sei lá, mas não vou fazer, só
não quero voltar pra casa deles. Não logo agora que tinha me acostumado a morar
sozinho... Mas tudo anda meio estranho demais. Foi apenas um beijo pô, entende
meu desespero? Sei que não pareço desesperado, mas não estou interpretando; o
desespero é suave, entende, meio que aquela canção do Capital Inicial: “só um
leve desespero que me leva, que me leva daqui” Engraçado... Acho que estava
tocando essa música quando beijei a Suzi. Nada romântico, né? A nossa cabeça
tem umas coisas estranhas que não consigo entender. Não me lembrava da música
quando beijei a Suzi, na hora não estava ouvindo nada, mas agora a música não
sai da minha cabeça, quando lembro daquela cena. Cena? Engraçado chamarmos de
cena o que acontece em nossa vida, parece que estamos na novela. É... Mas não
estamos... Foi mal, tô viajando.
Ah, você tem que ir? Tudo bem;
bom demais te ver aqui. Há quanto tempo não dava entrevista pra você? Uns dois
meses, né? Sim, com certeza a sua revista vai crescer, deve estar sendo a maior
ralação; imagino que deve ser difícil pra você, sair assim de uma revista
grande e montar a sua própria. Tem que ter coragem; não sei se seria capaz de
fazer o que você fez. Mas é isso aí, precisando sempre de qualquer força estou
aí. Abraços, cara, e fique bem...
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