Ontem meus alunos-escritores, da Escola Municipal Alcino
Francisco da Silva, de Teresópolis/RJ, mostraram seus talentos narrativos,
recontando a história do clipe “Menina má”, de MC Anitta. Hoje, inspirado
neles, chegou a minha vez, é o momento de apresentar minha (sub)versão da
história do clipe de MC Anitta!
A minha (sub)versão da história é contada em primeira
pessoa, como aconteceu em vários contos que eu publiquei ontem, mas o meu
narrador-personagem não é a menina má, nem o rapaz que a esnobou na infância;
resolvi recontar a história, com algumas alterações nos acontecimentos, na visão
de um personagem que passa quase despercebido pela sua condição de objeto no
clipe, narro minha história através do cara que a menina má utiliza para fazer
ciúmes no rapaz que a esnobou na infância. Sim, aquele personagem secundário do
clipe, em meu conto, é o narrador-protagonista, uma das estrelas dessa saga de
amor, ódio e vingança.
O título do meu conto faz referência ao romance “Presença de
Anita” (1948), de Mário Donato, que foi transformado em uma minissérie
brasileira de 16 capítulos, exibida pela Rede Globo, de 7 de agosto a 31 de
agosto de 2001.
Para lembrarmos que todos somos protagonistas de nossas
histórias, por mais secundários que pareçamos, amigos leitores.
Presença de Anitta
(ou A vida inteira em um beijo seu)
Anitta era
uma garota muito linda, a menina mais linda do 5.º ano C. Estudávamos na mesma
sala, ela na primeira carteira do canto direito, eu na última do canto
esquerdo. Ficava admirando-a de longe, razão pela qual o professor Sócrates
sempre me chamava a atenção:
- Sempre
aéreo, Platão! Como vai passar de ano distraído desse jeito?
Mas eu não
estava preocupado com o ano, que, aprovado ou não, me passaria velozmente de
qualquer jeito. Queria era gastar o tempo todo admirando a linda Anitta. Pena
que ela só tinha olhos para o babaca do Homero, do 8.º ano A. Cego pelo ego,
Homero só amava a si mesmo, vivia admirando sua própria musculatura e esnobando
as garotas da escola.
Eu seguia
Anitta na entrada da escola, no recreio, na saída, em todos os momentos. Era
como uma câmera de reality show que registrava cada instante da participante
favorita. Tanto que eu estava bem perto dela, na saída da escola, quando vi
Anitta tomar coragem, se aproximar de Homero e entregar-lhe uma carta. Assisti
revoltado à cena: Homero leu a carta de Anitta em voz alta, com tom de deboche,
na frente de todos, na frente dela! Vi o semblante doce de Anitta ganhando
contornos de tristeza, vergonha e raiva. Homero e os amigos riam, enquanto
Anitta se transformava em alguém irreconhecível; era o fim da garota doce, era
o início da menina má. E eu não fiz nada... apenas senti o furacão furioso do
corpo de Anitta passar por mim e partir.
Depois
disso, nunca mais a vi naquele ano. Disseram que a mãe dela a trocou de escola.
Já Homero virou uma lenda entre os alunos: “Lá vem o garoto mau que espantou a
pirralha da Anitta”. Ouvi tudo calado, reparei como Homero se sentia
envaidecido com o mito criado, mas eu nada podia fazer, afinal também era
considerado um pirralho. Mas desejei ardentemente que Homero, um dia, pagasse
por seus crimes.
Os anos
seguintes passaram arrastado, sem Anitta, sem motivos para sorrir, nem para
sonhar. Homero completou o nono ano e, sem aptidão para os estudos, abandonou o
ensino médio e abriu uma oficina ao lado de minha casa, com patrocínio de seu
pai, um senhor arrogante que vivia cantando as mulheres da vizinhança. Passei
minha adolescência e início de juventude tendo que aturar a presença
inconveniente de Homero como uma espécie de vizinho. Pra piorar, minha mãe
começou a se engraçar com o pai de Homero:
- Não me
olhe assim, Platão! O pai do Homero é viúvo e eu estou separada de seu pai. Não
há nada de errado nisso, rapaz!
Jovem,
descobri que o crime compensa: o pai de Homero passou a freqüentar minha casa e
a oficina de seu filho prosperava. Pra se livrar de minha presença incômoda, o
pai de Homero fez seu filho tornar-me aprendiz de mecânico na oficina.
- Não é
assim, seu burro! Presta a atenção, pô! – passei o resto de minha juventude
aturando a ignorância de Homero, meu “irmão por consideração”, predicativo que
minha mãe dava a ele e que eu negava veemente.
Nesse
período, os anos se arrastaram sem brilho e com muita graxa. Minha existência
teria sido medíocre, se não fosse o retorno triunfal de Anitta.
Era um dia
de sol intenso, muito trabalho na oficina, Homero e eu ralávamos
incansavelmente, apesar do forte calor. Foi quando ela entrou na oficina e o
mundo pareceu ter parado para contemplá-la: Anitta estava na nossa frente, mais
madura, maravilhosa, trajando um vestido transparente, mais linda e sensual que
nunca! Apesar de seu olhar frio e hipnótico, diferente de outrora, reconheci
logo minha musa de infância. Já Homero não; continuava sendo o mesmo babaca de
antes, o mesmo idiota que só repara em si mesmo.
No rádio da
oficina, tocava um funk. Sem dizer palavra, ela começou a dançar e a provocar
Homero. Pensando ter encontrado uma presa fácil para seus encantos ‘irresistíveis’,
ele fechou a porta da oficina, olhou aquela deusa provocante lhe dando condição
e me empurrou:
- Vai lá
pros fundos limpar as peças, Platão! Vaza daqui!
Antes de
sair, olhei para trás e vi Anitta continuar sua dança provocante e empurrar
Homero na cadeira, próxima à mesa onde fazíamos os orçamentos para os clientes.
- Ah, você
gosta de bancar a mandona, cadelinha? Uh, vai me amarrar também! É isso aí,
cadelinha, manda que o teu macho obedece! – definitivamente ficar nos fundos da
oficina ouvindo as bobagens de Homero, imaginando-o com Anitta, depois de tudo
que ele fez, era o fim. De costas para tudo, cerrei os punhos e pensei em
finalmente tomar uma atitude, ou, pelo menos, sair daquele cenário de terror.
Foi quando
senti o toque ardente de Anitta em minhas costas. Me virei, nossa, ela estava
linda! Mesmo suada, senti seu perfume provocante, nossos corpos próximos.
Anitta trazia um sorriso maligno, mas permanecia fascinante pra mim:
- Vem
comigo, Platão! – pensei em lhe perguntar se ela lembrava de mim ou citava o
meu nome porque ouviu Homero falar comigo, mas seus olhos não pediam dúvida,
apenas obediência. Como na infância, apenas a segui.
De volta à área
principal da oficina, vi Homero amarrado na cadeira, se debatendo e
praguejando. O som alto do funk no rádio abafava os xingamentos dele. Anitta
colocou o dedo indicador da sua mão direita nos lábios dele, recomendando que
se calasse. Desolado e intimidado pelo olhar de Anitta, Homero só pôde
obedecer.
Então, na
frente dele, Anitta me puxou de encontro ao corpo dela e me beijou na boca. Senti
meu corpo afastar-se da Terra e transformar cada segundo daquele beijo numa
eternidade. “Ah, Anitta estava me usando pra se vingar de Homero; eu era um
mero objeto de seu plano”, minha consciência condenava minha passividade diante
da garota, mas, ah, bem que eu estava gostando! Ah, uma vida inteira em um
beijo!
Acordei do êxtase
quando Anitta afastou seus lábios dos meus e suavemente me empurrou. Olhei nos
olhos dela; éramos cúmplices de uma vingança bem feita. Não havia mais ódio em
seu olhar, apenas um brilho satisfeito de justiça. Então ela desciou seu olhar
para a porta. Não era mais uma menina má; era novamente a doce Anitta, que
precisava partir, seguir em frente.
Busquei ser
cavalheiro, abri a porta da oficina e fiz uma leve mesura, indicando-lhe a saída.
Anitta tocou de leve o meu rosto, fez uma breve carícia, deu o sorriso mais
lindo que já vi em toda minha vida e foi embora, sem olhar pra trás, deixando
ainda mais desolado o estúpido e amarrado Homero.
Fora em
alguns sonhos esporádicos, nunca mais vi Anitta. No dia seguinte à sua visita,
Homero e eu continuamos os trabalhos na oficina. Ele não me demitiu, nem me
dirigiu mais nenhuma ofensa. Homero parecia estabelecer com isso um contrato de
silêncio sobre o vergonhoso episódio. Imagino a cara que ele vai fazer quando
ver essa nota publicada no meu facebook e em outras redes sociais! Nunca gostei
dele mesmo e, caso me demita, até que me faria um favor. Anitta mudou sua história.
Está na hora de eu fazer o mesmo com a minha vida.
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