sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Contos musicais: Camila, Camila

Hoje a banda gaúcha Nenhum de Nós (que eu amo fã-naticamente!!!) comemora 26 anos de muitos sucessos e belíssimas composições. Ainda me lembro da primeira vez que os ouvi na infância: mamãe tinha um LP chamado "Amor é sempre amor", cuja terceira faixa do lado A era a canção "Camila, Camila". Como eu era criança, ainda não tinha muita compreensão para entender a falta de noção do organizador da coletânea (lembrando que a canção de Nenhum de Nós fala sobre uma Camila violentada por um homem de "olhos insanos" e o fato de ela estar relacionada num disco cujo nome é "Amor é sempre amor", logo após a romântica "Fui eu", de José Augusto, é, no mínimo, um ato insólito do cara que organizou o álbum) e quase acreditei no "amor" citado no título do LP. Quase... pois eu era criança demais para interpretar todas as metáforas da canção da banda Nenhum de Nós, mas não era tão tolo pra ser incapaz de perceber que havia algo diferencial naquela canção, algo que me tocava demais, algo que eu não sabia explicar, apenas sentir, ouvir e sentir... Foi assim que se iniciou minha história de amor com Nenhum de Nós, o refrão de "Camila, Camila" ecoando em meus sentidos - ainda criança, procurei uma Camila que eu pudesse amar e dizer, como no refrão: "Camilaaaaaaaa, oh!"
O tempo passou e o amor pela banda cresceu, assim como compreendi melhor o que "Camila, Camila" queria me dizer. E, inspirado nesse amor impossível por uma Camila ferida e extremamente musical, deixo aos leitores o meu conto inédito, inspirado na banda gaúcha de rock que mais amei, amo e sempre vou amar em toda minha vida:




Camila, Camila

Camila tinha os olhos mais lindos que já vi e eu tinha apenas dezessete anos.
Conheci Camila num tempo em que eu caminhava e fingia que o tempo passava. Melhor dizer que foi num tempo em que não conheci Camila, pois dirigia poucas palavras para minha vizinha. O ano era 1986, papai investia suas economias num sítio improdutivo, 2 km separavam nossas vidas, mas a casa de Camila ficava na mesma estrada que a minha e eu passava pelo caminho de terra batida todos os dias.
Todos os dias só para ver os olhos lindos de Camila me dizerem bom dia, enquanto ela estendia as roupas no varal. Todos os dias eu lhe acenava bom dia e só seus olhos me respondiam. Éramos bichos do mato trocando silêncios naquelas matas – a bela Camila que nada dizia e, eu, a fera que só gesticulava. Eu e minha paixão calada, ela e seu recato de mulher casada. O marido de Camila decretava bons dias formais, enquanto seu corpanzil camponês fazia a sesta no quintal, e eu, jovem e frágil, lhe respondia com um breve levantar e abaixar de cabeça. Bicho mais estranho que nós, o marido de Camila também nada falava, mas uma silenciosa violência gritava em seus gestos formais.
Algumas lembranças de Camila jamais me abandonam quando retorno ao passado. Num fim de tarde nublado, voltava a pé de uma festa de aniversário, levemente embriagado (sim, menores não devem, mas também bebem em festas à americana em casas de amigos), e, por fazer parte de meu solitário trajeto, passei mais uma vez pela casa de Camila para chegar até a minha. Não sei se foi o álcool que me motivou a observar mais detidamente; só sei que parei em frente à casa dela e reparei que a janela de seu quarto estava aberta. Casa pequena de muros baixos e de janelas imensas, meus olhos inquietos de adolescente voyeur tudo espiavam: Camila de perfil, olhava para frente, possivelmente se via no espelho. Por algum motivo, ela se virou para a janela e seus olhos lindos viram meus olhos furtivos, mas dessa vez nenhum cumprimento, nenhuma resposta calada; apenas um silêncio tenso, quase urrado. Hipnotizado por seus olhos lindos e surpreendido pelo fim de meu anonimato, quase não percebi o seu rosto marcado, mas o resto de claridade do fim de tarde, mesmo que nublado, gritava os ferimentos na face de Camila. E eu tinha apenas dezessete anos de pacífica devoção; não entendia que uma deusa poderia ser ferida, eu não sabia que a violência às vezes gritava nas casas alheias. E talvez fosse o momento de romper a mudez, mas foi o marido de Camila quem quebrou o silêncio. Sua voz furiosa ecoava nos fundos da casa: “Camila, Camilaaa!”
E a janela foi fechada, o tempo fechado, e eu corri dali, e a chuva começou, e eu corri e chorei pela minha própria covardia, e foi o início das trevas e das manhãs tristes, e nunca mais vi Camila naquela casa. Em minhas caminhadas seguintes, passei a dar bom dia para uma casa abandonada; não havia mais nada para se ver naquela estrada. Hoje sigo por outros caminhos, mas toda vez que retorno para minha casa e me olho no espelho é a imagem dos olhos lindos de Camila que eu vejo. Os olhos lindos e tristes de Camila e a minha imagem cada vez mais embaçada, cheia de marcas...


         

Um comentário:

  1. Muito bom o conto Carlos. O humano desumanamente irascível. Essa violência contra a mulher é tão absurda que parece que não caminhamos nada na linha supostamente evolutiva. O que difere uma criatura dessas para um animal irracional que ataca por instinto de proteção, sobrevivência ou de defesa de território. O animal é mais humano e o humano, quando age assim, não há classificação que se possa enquadra-lo.

    Sempre me pergunto o porquê de certas criaturas do sexo masculino acharem que sua genitália é uma arma que deve machucar. Mostrar sua macheza. apelidam até de espada. quando estão irritados pegam firmimentes no órgão e ameaçam "aqui pra você". Tolos, algo tão perfeito para ser encaixado e provocar prazer, tratado como um instrumento de tortura. Que Deus me perdoe, mas para esses trogloditas, as vezes, desejo que se tornem eunucos.

    Pensar em eunuco me fez lembrar do grande caso de amor entre o eunuco Abelardo e Heloisa. Para ela, nenhuma diferença fez ele ter ou não a genitália. Ela o amava e isso era tudo. (enfim, já me perdi nos pensamentos, deixa eu ressaltar as frases que adorei)

    1- "2 km separavam nossas vidas," - inicialmente, mas quantos quilômetros não os distanciaram depois da visão daquele rosto ferido hein? isso é claro, para os que tem consciência, outros acham que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Não nego que em alguns casos, quando metemos a colher, somos nós a persona non grata - mas mesmo esses casos são passíveis de solução, só não será se ele não existir por causa do silêncio).
    2- "Éramos bichos do mato trocando silêncios naquelas matas – a bela Camila que nada dizia e, eu, a fera que só gesticulava" - eita que esse arrasa quarteirao de emoção rsrsr.
    3- "o marido de Camila também nada falava, mas uma silenciosa violência gritava em seus gestos formais." - Quantos silencios de violências não testemunham e fingimos não ter percebido ou visto.
    4- "seus olhos lindos viram meus olhos furtivos, mas dessa vez nenhum cumprimento, nenhuma resposta calada; apenas um silêncio tenso, quase urrado." - fiquei a imaginar o que esse olhar via ante as dores do corpo e da alma.
    5- "eu não sabia que a violência às vezes gritava nas casas alheias. E talvez fosse o momento de romper a mudez, mas foi o marido de Camila que quebrou o silêncio. Sua voz bêbada ecoava nos fundos da casa: “Camila, Camilaaa!” " - momento tensíssimo do conto. Esse grito parece esfomeado por mais violência. As vezes os gritos são tão altos que só os cachorros escutam, menos os humanos.
    6- "eu corri e chorei pela minha própria covardia" - quantos de nós já não nos transformamos em atletas vencedores de São Silvestres, corremos para não encarar aqueles gritos.
    7- "Os olhos lindos e tristes de Camila e a minha imagem cada vez mais embaçada, cheia de marcas..." - É que dessa vez não temos a ajuda do Retrato do Dorian Gray, Carlos. Temos consciência de que nossos atos repercutem em nós, não em bodes expiatórios.

    Parabéns meu amigo! Por levantar esse tema.



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