O conto, de minha
autoria, que eu posto hoje retorna ao blog após alguns anos por 2 motivos
especiais: a versão atual é a revisada e definitiva, foi premiada na Categoria
Prosa com o 2.º Lugar no Concurso do GREBAL 2017 e, por isso, foi publicada na
Coletânea Prosa e Verso XX (que poderá ser baixada em breve no site do GREBAL: http://www.grebal.com.br/ ).
O conto “Camila,
Camila” é uma homenagem à canção homônima da banda de rock gaúcha Nenhum de
Nós. Ouvi a música pela primeira vez num LP chamado “Amor é sempre amor” e,
desde criança, jamais entendi por que uma canção sobre violência contra mulher
fazia parte de um álbum cujo nome versava sobre amor. De qualquer forma, a
música marcou-me e, até hoje, a banda Nenhum de Nós é uma de minhas preferidas.
Meu conto é dedicado, principalmente, à banda citada, à minha mãe, principal responsável
por minha formação cultural, e ao artistamigos do Sarau Solidões Coletivas (com
destaque ao mestre-poetamigo Gilson Gabriel e aos músicos-amigos Gabriel
Carvalho e Emanuel Coelho) e à escritoramiga Helene Camille, que sempre elogiaram o potencial da minha ficção
citada, a ponto de me influenciarem na escolha do texto que foi enviado e
premiado no concurso.
Em minha versão,
tracei uma ficção curta memorialística na qual o jovem narrador-protagonista
assiste à distância atos de violência contra a vizinha e musa idealizada
Camila. Aproveitei no conto diversas passagens da icônica canção do Nenhum de
Nós e usei-o para uma denúncia social da violência doméstica que as mulheres
constantemente sofrem, através de um narrador-personagem que não sabe como agir
diante de um amor ideal e praticamente impossível de se concretizar, muito menos
diante da violência que acidentalmente testemunha.
Espero que os
amigos leitores gostem do conto, assim como a Comissão do Concurso Prosa e
Verso XX do Grebal gostou! Boa leitura e Arte Sempre!
Camila, Camila
Camila tinha os olhos mais lindos que já vi e eu tinha apenas dezessete anos.
Conheci Camila num tempo em que eu caminhava e fingia que o tempo passava. Melhor dizer que foi num tempo em que não conheci Camila, pois dirigia poucas palavras para minha vizinha. O ano era 1986, papai investia suas economias num sítio improdutivo, 2 km separavam nossas vidas, mas a casa de Camila ficava na mesma estrada que a minha e eu passava pelo caminho de terra batida todos os dias.
Todos os dias só para ver os olhos lindos de Camila me dizerem bom-dia, enquanto ela estendia as roupas no varal. Todos os dias eu lhe acenava bom-dia e só seus olhos me respondiam. Éramos bichos do mato trocando silêncios naquelas matas – a bela Camila que nada dizia e, eu, a fera que só gesticulava. Eu e minha paixão calada, ela e seu recato de mulher casada. O marido de Camila decretava bons-dias formais, enquanto seu corpanzil camponês fazia a sesta no quintal, e eu, jovem e frágil, lhe respondia com um breve levantar e abaixar de cabeça. Bicho mais estranho que nós, o marido de Camila também nada falava, mas uma silenciosa violência gritava em seus gestos formais.
Algumas lembranças de Camila jamais me abandonam quando retorno ao passado. Num fim de tarde nublado, voltava a pé de uma festa de aniversário, levemente embriagado (sim, menores não devem, mas também bebem em festas à americana em casas de amigos), e, por fazer parte de meu solitário trajeto, passei mais uma vez pela casa de Camila para chegar até a minha. Não sei se foi o álcool que me motivou a observar mais detidamente; só sei que parei em frente à casa dela e reparei que a janela de seu quarto estava aberta. Casa pequena de muros baixos e de janelas imensas, meus olhos inquietos de adolescente voyeur tudo espiavam: Camila de perfil, olhava para frente, possivelmente se via no espelho. Por algum motivo, ela se virou para a janela e seus olhos lindos viram meus olhos furtivos, mas dessa vez nenhum cumprimento, nenhuma resposta calada; apenas um silêncio tenso, quase urrado. Hipnotizado por seus olhos lindos e surpreendido pelo fim de meu anonimato, quase não percebi o seu rosto marcado, mas o resto de claridade do fim de tarde, mesmo que nublado, gritava os ferimentos na face de Camila. E eu tinha apenas dezessete anos de pacífica devoção; não entendia que uma deusa poderia ser ferida, eu não sabia que a violência às vezes gritava nas casas alheias. E talvez fosse o momento de romper a mudez, mas foi o marido de Camila quem quebrou o silêncio. Sua voz furiosa ecoava nos fundos da casa: “Camila, Camilaaa!”
E a janela foi fechada, o tempo fechado, e eu corri dali, e a chuva começou, e eu corri e chorei pela minha própria covardia, e foi o início das trevas e das manhãs tristes, e nunca mais vi Camila naquela casa. Em minhas caminhadas seguintes, passei a dar bom-dia para uma casa abandonada; não havia mais nada para se ver naquela estrada. Hoje sigo por outros caminhos, mas toda vez que retorno para minha casa e me olho no espelho é a imagem dos olhos lindos de Camila que eu vejo. Os olhos lindos e tristes de Camila e a minha imagem cada vez mais embaçada, cheia de marcas...
Belíssimo conto, parabéns!
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