Hoje é o Dia Mundial do Rock e o escritor-blogueiro
que vos fala (muitas vezes rotulado de ‘poeta roqueiro’) não poderia deixar
passar essa data sem gritar um texto destilado de solos de guitarra. Por isso,
trago hoje ao blog um conto inédito meu, que possivelmente será lançado em um
dos meus próximos livros chamado “Diários de Solidão 2 – Quando a companhia faz
ausência”.
O conto que posto hoje é uma narrativa curta
e fictícia inspirada em minhas lembranças do estrondoso sucesso do meu
ídolo-maior Kurt Cobain e nas minhas leituras de entrevistas que ele concedeu à extinta revista Bizz – uma, memorável (nem tão memorável, pois não me lembro da p... do
número da revista), o repórter informa que Cobain tinha recém-saído de mais uma
internação por uso de drogas e os dois conversam sobre o recém lançado (e
super-fodástico) álbum “In Utero”. Na entrevista, o jornalista pergunta a Kurt
sobre a canção “I Hate Myself And I Want To Die” (“Eu me odeio e quero morrer”),
que estava presente apenas como faixa bônus em CDs, EPs e CDs singles, ou seja,
a faixa não fazia parte do LP “In Utero”. Kurt respondeu ao repórter que ‘aquilo’
foi apenas uma brincadeira dele e o entrevistador não se aprofundou na pergunta
– apesar de descrever um Kurt bastante melancólico após sair de mais uma
internação – e ficou tudo por isso mesmo. Tempos depois, veio a notícia do
suicídio de Kurt Cobain.
Depois disso, passei a ouvir entristecido o LP “In
Utero” na casa de meu primo Charles (para minha completa inveja, dos meus
amigos, só ele tinha o álbum em LP e, além disso, possuía um toca-discos que
ainda tocava – o da minha casa, estava com a agulha ferrada do toca-discos há
um tempo), ficava pensando naquela música desconhecida do Nirvana citada pelo
repórter, “I Hate Myself And I Want To Die”, e pensando, pensando... Mais
tarde, lendo diversas entrevistas de Kurt e finalmente ouvindo a emblemática canção
citada, ficava cada vez mais evidente que Kurt Cobain já se preparava para sua “autodis-solução”
há algum tempo, todos nós sabíamos e deixamos tudo aquilo rolar, apresentando
surpresa com uma profecia constantemente anunciada.
Essa história ficou na minha cabeça por muito
tempo, a ideia rockstar de que os bons ídolos morrem cedo, o nosso ar
supostamente surpreso e, ao mesmo tempo, cheio de fascinação para a morte de
artistas que sabíamos serem extremamente melancólico e declaradamente (e, ao
mesmo tempo, fodasticamente) autodestrutivo, a pouca insistência do repórter na
questão de uma evidente tragédia declarada... tudo isso ficou rolando na minha
cabeça por anos e anos e anos até que me surgiu esse conto, cujo narrador – um repórter
sensacionalista e meio cretino, com crise de consciência - acaba fazendo sua
confissão de forma atropelada no balcão de um bar ( esse meu estilo foi muito,
muito influenciado pela técnica narrativa usada por Rubem Fonseca no conto “Gazela”,
de seu primeiro livro “Os prisioneiros” – mas lido por mim antes numa coletânea
sobre ‘contos de amor’), ao mesmo tempo que revela seu encanto pelo personagem “recém-autofalecido”
rockstar Guto Colbin.
Como um “prisioneiro”, este conto, que
batizei de “Furo de reportagem (ou O sucesso inevitável de Guto Colbin)” ficou
guardado entre meus arquivos de computador e, finalmente, é revelado ao amigo
leitor.
Bom Dia Mundial do Rock e Arte Sempre, amigos
leitores!
Furo de reportagem (ou O sucesso inevitável
de Guto Colbin)
Arte
é o cacete! O povo quer é sangue, podridão. O que você acha que teve mais
visualizações, amigo: as fotos do crânio estourado do Guto Colbin ou o clipe de
sua última canção experimental “Meu miolo mole molha os móveis de nossa mansão
de mansos vazios”? Te respondo em números, colega: 2 bilhões de visualizações
das imagens fúnebres do nosso último rockstar... O clipe? Ah, agora que o gênio
já é defunto, passou de 10.000 pra 1 milhão de acessos. Mas a morte continua
ganhando, cara, a morte sempre ganha. O título da música era grande demais pra
fazer sucesso, o ritmo complicado demais pra virar hit, a letra poética e
premonitória demais pra ser compreendida; não era pop, ele nunca foi pop, tô
nesse ramo de fazer matéria pra revista de música há bastante tempo e até hoje me
impressiono com o sucesso que Guto Colbin fez. Talvez tenha sido seu ar
incompreendido, talvez por não nos dizer nada de uma forma tão poética que até o
nada fazia sentido, sei lá, queriam um rebelde que morresse cedo e, assim,
vendesse mais fácil. Porque o povo quer é sangue, cara. A última canção falava
claramente disso, desse vazio, uma morte declarada, um salto no vazio, todo
mundo sabia que, depois dela, ele se mataria. Mas deixaram ele morrer... E já
viu como ele vende bem mais agora? Ah, cambada de filhas da puta! Deixaram ele
morrer... Inclusive eu... É, inclusive eu...
Já
te disse que fui um dos últimos que o entrevistou? Eu perguntei pra ele sobre
seu último álbum “Blecaute em mim mesmo”, sobre o clipe, sobre as mudanças de
rumo de seu estilo sonoro, sobre sua nova obsessão com a temática da morte.
Sabe o que ele fez? Me deu um sorriso triste, o mais triste que você pode
imaginar e me disse que era tudo uma brincadeira, “como quando brincamos de
apagar a chama da vela sobre a mesa com os dedos molhados sem medo de nos
queimarmos”. Sim, foi exatamente essa comparação que ele fez. Pensei: estou
diante de um cara prestes a se matar. E o que fiz? Registrei toda a entrevista,
linha por linha, até logo, tchau, tenho que levar a matéria pra revisão e o
prazo é curto. Sentiu a escrotice? O cara estava prestes a se matar e a minha
preocupação era a de que a minha matéria saísse na edição daquele mês, antes
que a desgraça acontecesse. É... igual aquele cara que lavou as mãos, esqueci o
nome dele; acho que já bebi demais, mas manda mais uma dose, hum, isso,
capricha... Onde que eu tava mesmo? Ah, a revisão! O editor só destacou a parte
em que o Guto Colbin cita sua décima internação numa clínica pra
desintoxicação; o povo quer é isso: saber se o rockstar drogado se transformou
num bom menino ou se ele vai voltar a se apresentar com o nariz escorrendo
sangue de tanto pó. Se o artista diz que está curado, o povo vai conferir o
show, a filmadora ligada, só esperando uma recaída, uma meleca de sangue sair
do nariz do cantor e entrar para os vídeos mais acessados da internet. É isso,
o povo gosta de sangue e Guto Colbin sangrava bastante no palco; talvez esteja
aí a razão de seu imediato e inexplicável sucesso. Ah, e sabe o que aconteceu
com a comparação que o Colbain fez? Rá, o revisor cortou, só ficou “Era tudo
uma brincadeira”, os adolescentes retardados que leem a porcaria da revista na
qual escrevo não teriam capacidade de compreender ou aceitar a poesia trágica
de Colbin, preferem agitar a cabeça, seguir o ritmo, escutar sem ler, ouvir sem
entender, ah, fazer o quê? Melhor calar minha boca; é dessa droga que tiro meu
sustento. É... talvez o revisor também estivesse lavando as suas mãos como eu,
sei lá, devo estar viajando, já bebi demais, hey! mas deixa o copo aí, põe mais
uma dose, sei que devo estar te enchendo o saco e você, como dono de bar, vai
me dizer que não, mas é assim, né, somos todos hipócritas.
Mandaram eu resumir
minhas duas laudas sobre o último álbum do Guto Colbin para dez linhas e sobre
a internação, que ele quase não quis comentar, tive que aumentar, até inventei
um pouco, fazer o quê? Não sou o editor, só sigo ordens. A edição saiu 10 dias
antes do Colbin se matar; assassinaram meu texto, espero que ele não tenha lido
a matéria, o cara fingia de louco, mas dava pra perceber: ele era sensível pra
caralho, letrista foda, compunha muito, Guto Colbin era um daqueles gênios
raros do rock... Agora se foi, já era... Espero que ele não tenha lido aquela
merda de matéria, senão ele teria mais um estímulo pra se matar, ai, ai... Hey!
essa dose veio bem mirrada, amigo, capricha mais na próxima, ora, o preço da
bebida já está de matar e você vem de mesquinharia comigo que sou cliente
antigo? Quer que eu vá embora, acha que bebi demais, é? Não vai responder, só
fazendo seu trabalho, né? Pois saiba que não vou sair, tô muito bem ainda, tá me
entendendo? Estamos todos fazendo nosso trabalho; somos todos hipócritas. Minha
inspiração na última entrevista com Guto Colbin não valeu de nada pro editor daquela
porra de revista na época! Agora que o cara está morto, é sorrisinho do chefe e
edição especial com a matéria na íntegra! Anos fazendo faculdade de jornalismo
pra bancar o vampiro de rockstars numa revistinha de bosta. Mudar o mundo é o cacete!
Revolucionar a escrita jornalística, rá!... O povo quer é desgraça, aqueles
jornais que a gente espreme e parece que sai sangue de suas páginas, saca? É
isso aí, camarada, somos todos vampiros. Aí, isso! Agora sim, uma dose
caprichada, gostei de ver, esse é o Benedito que eu conheço, por isso que eu
bebo sempre aqui, você sabe servir bem um cliente fiel!
É...
O Colbin era um daqueles músicos raros, sabe, tô nesse ramo de fazer matéria
pra revista de música há bastante tempo pra saber quando uma estrela brilha de
verdade. E há muito tempo um cara não brilhava tanto como Guto Colbin. Fiz umas
dez entrevistas com ele, sabe? É... A gente força uma intimidade com os
artistas pra tirar uma confissão e, quem sabe, se der sorte e for competente,
conseguir alguma declaração polêmica. Mas o Colbin era foda, tinha aquele jeito
dissimulado e melancólico, sabe, de quem engana descaradamente e que parece
sempre estar jogando contigo assim como jogamos com ele. Das polêmicas que
tirei dele, metade eu forjei, distorci, fazer o quê? O cara não se abria,
respondia a tudo com evasivas poéticas e nenhum leitor quer ler poesia, saca?
Tem muita gente brilhosa na música, amigo, mas o Guto Colbin era brilhante e me
fazia parecer um cretino. Não, ele nunca foi grosseiro comigo não, irônico
talvez... Filho da puta! Colbin era um artista do caralho e podíamos falar
sobre tanta coisa, suas inspirações, aspirações, transpirações, mas o editor
queria que eu registrasse mais as pirações dele... Agora me diz: como retirar
confissões de um louco lúcido? Inventei muito do Guto Colbin que vi e ouvi; era
meu trabalho, porra de trabalho cretino!
Posso te confessar
uma coisa, Benedito? Nunca me esqueço daquele sorriso triste que ele me deu
naquela última entrevista; às vezes, fico horas com aquela imagem na minha
cabeça. Talvez ele precisasse apenas de um gesto amigo, sei lá, tipo “não faça
isso”... Não... Soaria artificial; ele parecia saber que tudo estava perdido e
parecia prever que eu simplesmente faria o meu papel de jornalista; Guto Colbin
sabia me fazer parecer um cretino... Sim... Acho que fui mesmo... Todos fomos
cúmplices de um suicídio induzido, amigo. Sim, era inevitável; o Guto Colbin
sabia perfeitamente disso... Putz! Já é bem tarde, né? Só nós dois aqui,
puxa... O tempo passou tão rápido, né? Você deve estar morto de cansaço, hein,
Benedito? Não vou te segurar mais, amigo, encerra minha conta, vê quanto deu e
pode ir fechando o bar. Já estou saindo...
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