Às vezes a gente se sente um inseto.
Você é um correntista do banco X e mais uma vez recebe uma
cobrança indevida, está numa fila imensa para ser atendido por gerentes que não o compreendem, se sente uma presença incômoda no lugar; ele o atende com
desdém, sem olhar pra você, dá justificativas que você não entende, parece
enrolá-lo, você está cansado e lá vem aquela impressão de ser um inseto e a
sensação de tempo perdido. Ou você é um usuário da operadora Y de telefonia ou
internet e mais uma vez ela não oferece uma prestação de serviço satisfatório
do produto que tão delicadamente lhe vendeu; ao reclamar, você é passado para
ramais e ramais, transferido continuamente como se fosse uma batata quente nas
mãos de quem tão rispidamente o atende, de novo a sensação de incômodo, ninguém
compreende devidamente seus problemas com o produto, insinuam que você deve
estar fazendo algo errado, parecem enrolá-lo, você está cansado e, depois de
muito tempo perdido apesar de a lei dizer que você não deveria perder tanto
tempo em sua solicitação, vem aquela impressão de inseto. Ou você é um
telespectador e a programação da televisão não lhe agrada, mas todos a sua
volta estão rindo, felizes com as porcarias que as emissoras nos empurram, você
quer reclamar, mas está cansado e teme mais uma vez ser rejeitado pelos seus
‘semelhantes’, a tevê lhe diz que todo aquele lixo contido nela tem tudo a ver
com você e eis o silêncio do inseto e a impressão de parasita em lugar
aparentemente saudável. Ou você é empregado de uma loja ou operário de uma
fábrica e sabe que mais uma vez as negociações por um salário melhor se
arrastarão para um final miserável e melancólico, o sindicato diz que vai
quebrar tudo, fazer greve, mas parece não ouvir suas reivindicações, você
estranha os sorrisos maliciosos do líder sindical, seus patrões exploram você
além do limite, você está cansado e, após várias reuniões em vão, o aumento
real de salário não veio e amanhã você retornará ao trabalho, será novamente
explorado e o tempo passa, suas condições financeiras são precárias, o
sindicato só retornará a discutir sobre o assunto no ano seguinte, nada pode
ser feito e você é mais uma vez um sábio inseto – o final da novela estava
escrito e você interpretou o seu trágico papel a contragosto, conhecia o
roteiro, mas jamais dirigiu as cenas que encena. Ou você é professor, teve os
mesmos problemas na negociação por melhores salários, seus alunos muitas vezes
não o escutam, seus superiores – estatais ou não – têm uma política de educação
da qual você discorda, mas tá imposto nas leis, basta obedecer; homens de terno
roubam milhões de sua nação, filósofos de quartos trancados impõem as novas
tendências de ensino, os responsáveis nem sempre educam as crianças que crescem
irresponsavelmente, a ignorância corre solta e perigosamente armada pelas
escolas de seu país e, em rompantes de revolta, os seus alunos o escolherão
para descontar todas as raivas que eles sentem do mundo à sua volta e mais uma
vez você é um inseto no meio da agitação da sala de aula, da burocracia da
escola, da pedagogia do pobre coitado que o oprime e lhe ensina que você sempre
será culpado pelo que não fez, você tenta ser o herói que traz esperança ao
futuro de todos, mas todos o tratam como apenas um mártir que tenta fazer o que
mais ninguém faz, suas patas cada vez mais pequenas como as de uma barata e
você está cansado demais, continua tentando, mas, no fundo, no fundo, espera
ansiosamente que o dia termine sem tomar mais nenhuma chinelada. Ou você é
humano e não gosta nada da humanidade ao seu redor, tenta sobreviver à vontade
de cortar os pulsos a cada crime atroz, a cada corrupção revelada e, mesmo
cansado, você resiste, afinal as baratas são os últimos seres a serem
eliminados do Planeta Terra (caso se rendesse aos desejos suicidas, se tornaria
apenas mais um ‘mosquitinho da luz’, um inseto que se atira na própria extinção,
algo que lamentamos por uns alguns segundos e limpamos e esquecemos quando suja
demais a luminária) e vem a sensação de sufoco diário, o mundo imenso e você
tão pequeno, inseto valente encarando o inferno e o sereno, enquanto a vida se
torna uma musa cada vez mais linda e inalcançável.
Tudo parece perdido, você se sente um inseto sozinho, mas
eis o livro na cabeceira, a arte sempre, Kafka e seu livro “A Metamorfose”
sempre a mão, um filme melancólico como o “Desapego”, desesperador, mas com cenas
finais que aliviam a atmosfera sufocante, a possibilidade de um grito ouvindo
canções como “Quem vai limpar o quarto de Gregor Samsa?”, da banda Dance of
Days, a construção de um novo mundo a cada escrito seu, você ainda é um inseto,
mas agora rege um mundo que é tão gigante quanto o mundo que o atordoa. Sim,
você ainda é um inseto, mas é um inseto que cresce. Com a arte, você é um
inseto gigante, Davi derrubando Golias; onde parecia não ter alívio, alguma
esperança aconteceu. E Kafka, você e eu sabemos que os insetos ainda podem ser
mais gigantes. Por isso que Kafka escrevia; por isso que um amigo consciente
não deixou Kafka queimar seus escritos; por isso que Gregor Samsa, o personagem
que se transforma em um inseto, vive na eternidade; por isso que você e eu
escrevemos; por isso que ainda vivemos; por isso que o mundo, mesmo ferido por tantos conflitos, ainda é meu e seu.
KAFKA COMIGO
Leitura encerrada, livro fechado,
Janela aberta no quarto da consciência...
Uma barata me mordeu:
Gregor Samsa sou eu!
Quando paramos de corresponder Às expectativas...
ResponderExcluirQuando ficamos diferentes...
Quandos nos sentimos sozinhos, mesmo entre a família...
Em muitos momentos, todos somos Gregor Samsa...