Cena do filme "O sétimo selo" (1957), de Ingmar Bergman, na qual os personagem dançam com a Morte |
Escrito no início de setembro de 2020, um pouco antes de eu mesmo passar por sintomas da Covid-19, "Ciranda da pandemia" me surgiu enquanto eu cumpria meu ritual de bebedeira solitária em meu quintal, sentado na cadeira de balanço herdada de vovó, de frente pra praça Emília Jannuzzi, em Valença/RJ. Tal posição em que me encontrava, lembrando que o bairro é composto por ruas em ladeiras e a casa de mamãe, onde passei grande parte da quarentena, fica no meio de um destes aclives, me permitia uma vista panorâmica do bairro. Naquele momento, refletia sobre todos os causos ouvidos por vizinhos e amigos e/ou assistidos em mídias e/ou vivenciados por meus olhos ainda espantados (ao mesmo tempo que fascinados - numa expressão inédita criada pela artistamiga Alayde, 'absurdado') com a espécie animal paradoxal que chamamos, nem sempre racionalizando, de humanos (mais tarde, menos um mês depois, sairia também o poema [já publicado aqui no blog – caso não tenha lido, segue o link: https://diariosdesolidao.blogspot.com/2021/01/a-revolta-natural-do-alto-das-arvores.html ] “Do alto das árvores líricas da praça Emília Jannuzzi, a maritaca assiste e canta aos homens, durante a pandemia”, com outra perspectiva [obrigado, queridas maritacas do São José das Palmeiras], mas com o mesmo gatilho de partida).
Em “Ciranda da pandemia”, como o próprio nome sugere, resolvi desfilar uma ciranda de personagens, como se fossem vizinhos do poeta que os observa (e que também faz parte deste letal giro solitário coletivo), cada um agindo e/ou sendo acionado a seu modo diante da quarentena. Tentei a ideia de ciranda na formatação dos versos e das estrofes, estabelecendo estrofes com orações similares (os modos de agir de cada um são diferentes, mas os períodos nos quais são transmitidos repetem a fórmula sujeito com núcleo e adjuntos adnominais/complementos nominais [ativo nas primeiras estrofes, passivo e influenciado por agentes da passiva nas seguintes, e assim sucessivamente, variando como uma grande roda de corpos enlaçados, avizinhados, mesmo que distanciados] no primeiro verso, elementos descritivos do personagem no segundo [quando sujeito ativo; quando passivo o foco do segundo verso vai pro agente da passiva e como este influencia sua ‘vítima’], verbos, em quase todos os casos, transitivos diretos e indiretos [mais enlaçamento, mais ideia de ciranda] que expressam comunicação [exceto alguns, como, o do último personagem da ciranda, o poeta, cuja ação de comunicação está implícita ao se explicitar o poema, a mensagem] de algo a algo/alguém nos versos seguintes, culminando quase sempre em um último verso com oração subordinada [adjetiva, nas duas primeiras; substantiva, nas duas seguintes, até o rompimento nas duas estrofes finais, que trazem coordenadas, que são mais diretas, potencializando clímax e desfecho, como se fosse uma narrativa/cantoria em ciranda]). Para isso, pensei/me deixei influenciar em canções como “O dia em que a Terra parou”, de Raul Seixas, e “A banda”, de Chico Buarque de Holanda, entre outras (sim, mesmo escrevendo meio bêbado, por incrível que pareça, às vezes [ok, raras, mas não tão poucas vezes] o álcool me traz inspirações muito melhores que a sobriedade. O poema saiu meio que de um fôlego só, como se já o estivesse (e talvez realmente estivesse) todo na minha cabeça.
Inicialmente, mostrei o poema para alguns artistamigos de confiança, como Rosangela Castro, que, comparando os demais poemas que escrevi no período, apostava que “Ciranda da pandemia” logo ganharia destaque em algum certame literário. Como Rosangela, também tenho um carinho especial e um clandestino orgulho sinceramente nada modesto de ter escrito este poema, mas, de todos, foi o mais rejeitado/que mais saiu incógnito em concursos literários (mas, poema louco tanto bate em concursos até que ganha louvor por sua loucura, “Ciranda da pandemia” finalmente, quase um ano depois de tê-lo escrito, foi um dos selecionados para publicação em e-book [juntamente com “Isolamento coletivo ideal” e o microconto “11.441/07”, já publicados aqui em postagens anteriores do blog, e sim, depois de muitas sovas carinhosas em certames literários {fico dolorido, mas jamais contesto o resultado do júri, até porque somos um país gigante em talentos, mas não posso negar, é claro, uma certa dor de cotovelo por um filho-poema meu ser tantas vezes renegado}, finalmente emplaquei 3 selecionados em uma mesma pacífica e sempre lírica disputa literária, há pouco, neste terceiro trimestre de 2021], no concurso “Literatura de circunstâncias”, organizado pela Editora da Universidade Federal de Roraima).
Então, amigos leitores, entremos na roda e dancemos os olhos, nesta passada, mas ainda recente (e, infelizmente, ainda às vezes terrificafantasticamente atual) “Ciranda da pandemia”. Espero que gostem. Boa leitura e Arte Sempre!
Ciranda da pandemia
O viajante infectado,
de sorriso aberto, gestos largos,
comunicava a quem via
a negação de um vírus
que ele próprio transmitia.
A esposa trancada,
quase muda, sempre silenciada,
não sabia a quem mais temia
se o risco do contágio ou o marido
que sempre a agredia.
O trabalhador, esgotado,
pelo home slave office domesticado
confessava no privado
a quem on line podia
que quanto mais sobrevivia, mais inexistia.
A beata, assustada,
pelo temor a Deus ainda resguardada
jurava no grupo das famílias
a quem on line a lia
que o Juízo Final lhe penetrava na alma dia após dia.
O informal desempregado,
de gestos contidos, sorriso machucado,
mendigava a quem aparecia
o pedido de uma vida mais aguerrida
como a do trabalhador esgotado
ou a do viajante infectado
que sempre lhe sorria.
A pessoa amada,
quase perdida, distanciada,
prometia a quem não conhecia
o sonho de uma vida mais bonita,
melhor que a da esposa trancada,
melhor que a da beata assustada,
mas a distância permanecia.
O poeta mascarado,
de sorriso vendado, fingidor descarado,
da varanda, no alto, a todos assistia,
mas, despido de medicina, seus doentes assistir não podia,
enquanto velhos vazios vestiam extravagâncias nas casas vizinhas,
escandalizando e viralizando mais que a moderna pandemia.
"Ciranda da pandemia" marca muito bem seus passos ora largos, ora contidos, no chão de nossos abrigos, às vezes casas, varandas, terraços vazios de sorrisos abertos. Bravo, poeta! Parabéns pelo belo poema e por mais uma vitória gloriosa. Beijos
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