terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Meus contos sombrios de Natal: A crônica natalina não publicada de Augusto Albuquerque


Desde a retomada das postagens no blog agora em dezembro, reservei o espaço a algumas solidões compartilhadas que há tempos queria publicar (e há outras mil que pretendo trazer ao blog) e, apesar de também ter vários textos meus que se destacaram nos últimos tempos, ainda não havia trazido nenhum conto, poema, crônica ou prosa poética de minha autoria. Hoje, às vésperas de mais um Natal, decidi mudar essa configuração: trago para os amigos leitores um conto sombrio meu de Natal.
O nome do conto é “A crônica natalina não publicada de Augusto Albuquerque”. Como o próprio título revela é um conto que finge ser uma crônica – uma crônica fake, fictícia, ligada a fatos históricos da Velha República, em especial relacionada a um trágico acontecimento real: o suicídio do agitado escritor Raul Pompeia em pleno dia de Natal de 1895. Na época, Raul Pompeia, autor do clássico “O Ateneu”, estava sendo perseguido e caluniado politicamente e isolado por desavenças com famosos escritores devido ao temperamento explosivo do escritor nascido em Jacuacanga, Angra dos Reis, mas há algum tempo residente no Rio de Janeiro/RJ. Seu suicídio, realizado no dia de Natal, ganhou força simbólica devido à data escolhida para sua autodissolução e marcou seu posicionamento opositor aos rumos da Velha República (uma espécie de imagem sonhadora do Brasil Republicano suicidara junto com o seu principal intelectual defensor/articulador). 
Esse acontecimento - todo aspecto louco/lúcido/radical de autodeterminação extremista de autodissolução - sempre mexeu comigo, por conhecer a vida e obras de Raul Pompeia e também por experenciar, quando criança, a partida prematura de minha prima Eliete – também escritora, mas jamais publicada – por um ato suicida parecido, mas sem o peso simbólico do tomado pelo escritor angrense. Todos esses acontecimentos mais estudos adicionais sobre os progressos e passos retrógados da Velha Repúlica influenciaram o processo de criação de meu conto, que chegou a se classificar numa seletiva de antologia natalina em 2018, cuja publicação ainda não chegou ao meu conhecimento (como podem perceber por publicações anteriores minhas, aguardo um tempo para trazer ao blog contos, poemas e crônicas classificados para publicações; no caso do que publico agora, dei o prazo de um ano).
O texto natalino de hoje é o mais sombrio que publico nesse período festivo desde o surgimento do blog (se preferirem algo mais alegre, recomendo que visitem as postagens de natal de anos anteriores), mas vem em data próxima ao trágico acontecimento histórico-literário que o influenciou. Apesar desta ‘sombriedade’, espero que gostem, amigos leitores.
Feliz Natal e Arte Sempre!

A crônica natalina não publicada de Augusto Albuquerque

Há acontecimentos da História, assim maiúscula, que afetam nossa história, essa aqui, bem mais próxima de nós, considerada menor, sempre vista de forma minúscula. A que trago hoje ao conhecimento dos leitores deste ilustre jornal envolveu a mim e a meu tio Alfredo Albuquerque na noite de natal de 1896. O leitor mais perspicaz perceberá que já inicio minha crônica com uma afirmação deveras questionável, pois, com o desenvolver do enredo, constatará que os fatos já sofriam influências da noite de natal do ano anterior ao citado por mim, mas justifico-me lembrando de que o ano de 1895 nada marcou à minha insignificante pessoa; somente ao meu tio, talvez o verdadeiro protagonista desta história, cujo protagonismo minha pena egocêntrica rejeite destacar - assim são as verdades das afirmações humanas e das nossas histórias, maiúsculas ou minúsculas: relativas, recheadas de análises contraditórias, confirmando que o ato de errar, acertar e também errar acertando ou acertar errando é um ato peremptoriamente humano. Abstrações à parte, vamos à história.
Tio Alfredo Albuquerque era um dos mais queridos parentes de nossa família orgulhosamente republicana, principalmente por ser o primeiro a ter ingressado com louvor nos Corpos Militares da Polícia alguns anos após a Proclamação da República. Tal ato de meu tio rendia-lhe sorrisos graciosos dos familiares mais exaltados com a história pregressa de luta pelo Estado Republicano que os Albuquerque ardentemente defendiam há gerações. Mas, na noite de Natal de 1896, não houve gracejos que retirassem de tio Alfredo o estado taciturno, ensimesmado, no qual se prostara, entocado numa cadeira afastada do clima festivo dos demais parentes.
Mamãe, considerando que tal atitude era causa de cansaço ou de alguma ocorrência policial escabrosa na noite anterior (todos sabíamos que a capital não era um modelo de cidade pacífica, principalmente nos agitados anos do fim do século XIX, e, diante das turbulências políticas e revoltas no Brasil, imagina as situações e crimes que nossos honrosos Corpos Militares devem testemunhar, até nas noites de vésperas de Natal), pediu a todos que respeitassem o recolhimento de meu tio. A súplica materna e a impostação autoritária de sua voz podiam sensibilizar ou convencer a maioria dos parentes ali presentes, porém soavam como um desafio a um diabrete de onze anos como eu. Como assim o titio não quer comemorar o Natal com a gente, questionava meu eu antigo. Assim que a vigilância constante de mamãe folgara, aproximei-me de tio Alfredo.
O aspecto dele, outrora altivo, era aterrador. Há cerca de um ano, eu reparara algumas mudanças físicas progressivas (ou regressivas?) em meu tio Alfredo. Em seus cabelos loiros, insolentes fiapos brancos se proliferavam e desvalorizavam o aspecto ainda jovial de seus saudáveis trinta e dois anos recém completados.  Seus olhos verdes, antes quase infantis como os meus, adquiriram um incômodo brilho melancólico, como folha de árvore caída em manhãs cinza de outono – pareciam brincar ainda com o tempo, mas, na verdade, traziam apenas a passividade de um morto, cujo corpo leve é faceiramente carregado pelo vento. Titio Alfredo ainda brincava comigo como o tio mais divertido e traquinas que era, mas de um ano pra cá parecia perder o ar pueril. E um diabretes de onze anos teimoso como eu, sem parentes com idade equivalente a minha, não poderia perder o melhor companheiro de travessuras. Mas, naquela fatídica noite de Natal de 1896, meu tio tinha outros planos, nada divertidos.
- Eu não estava aqui no Natal do ano passado... – meu tio balbuciou sem me olhar; parecia ciente da minha aproximação, mas ignorante da identidade do interventor de seu alheamento.
Sua declaração não me trazia novidades, pois, diante dos outros parentes chatos, fui o que mais sentiu sua falta na noite de Natal de 1895, o Natal mais sem graça de minha infância. Antes que eu lhe dissesse isso, ele continuou:
- Eu estava trabalhando... Atendemos uma ocorrência, uma senhora abriu a casa, estava desesperada, seu filho suicidara... Um tiro no peito... Em plena noite de Natal... Seu nome era Raul Pompeia... era escritor... – Nesse momento, baixou os olhos para o livro em suas mãos: “O Ateneu”. Queria lhe dizer que não estava gostando da história que ele me contava e que aquele livro na mão dele devia ser muito chato para deixá-lo assim tão transtornado, mas tio Alfredo continuou a balbuciar, ignorando-me sem me ignorar. – Um tiro no peito... No coração da nossa capital... Podia ter sido assassinado... Em plena noite de Natal... O corpo estava no escritório... Eu queria acreditar que foi assassinato... Eu investiguei por minha conta... Artigos de jornais, depoimentos de amigos e vizinhos, até esse livro... Um ano investigando... As evidências confirmaram o suicídio, os investigadores muito mais graduados não tinham dúvida, sempre foi suicídio... Mas por que eu não estava convencido? Foi assassinato, eu cismei que foi assassinato... – Aquilo já estava me dando gastura, queria sair dali, o tio estava muito chato naquela noite, mas ele não parava, a voz embargada, o bafo de álcool, tio Alfredo estava muito chato e bêbado – A República está ruindo, mas ninguém quer me ouvir... Não sei o que estou fazendo aqui... – O que era aquilo? Um poema que meu tio declamava para um fantasma? Um poema muito ruim, por sinal.
Antes que eu lhe expusesse a minha crítica sincera à péssima qualidade de seus versos e lhe informasse que queria brincar com ele, mas não queria mais, porque ele estava muito chato, mas que, se esquecesse essa história chata e esse poema ruim, eu esquecia também e a gente poderia finalmente brincar, mamãe chegou me dando palmadas:
- Já não disse pra deixar o seu tio Alfredo em paz, seu moleque!
- Ninguém quer me ouvir... – foram as últimas palavras que ouvi de meu tio Alfredo, enquanto mamãe me arrastava pelas orelhas para longe dele. Depois disso, fiz tanta manha que nem percebi quando titio Alfredo se retirara da festa de Natal.
No dia seguinte, ninguém mais falou de tio Alfredo. O orgulho da família tornou-se assunto proibido, assim como quaisquer críticas aos rumos da nossa adorada República. Ninguém mais viu, visitou ou recebeu visita de tio Alfredo também. Meu melhor companheiro de travessuras nunca mais vi, eu o perdi. Foi assim que ganhei esse desejo triste de gritar em silêncio, de brincar melancolicamente com as palavras.
Peço perdão aos amigos leitores deste ilustre jornal pela crônica tortuosa desta edição de Natal de 1907. Depois de tantos anos, ainda escrevo com o fantasma da criança que nada disse a tio Alfredo naquela maldita noite de Natal de 1896. Assim se faz a História que marca a nossa história e assim encontramos o sentido mais sincero, porém negado, desta data contraditoriamente festiva: pela tragédia anunciada hipocritamente comemorada, pelos não feitos diante do trágico previsto. A verdade, amigos leitores, é que festejamos em todo Natal o nascimento de nosso amor ao martírio e poucos entendem isso. Poucos, como Raul Pompeia e meu tio Alfredo Albuquerque, entenderam tal significado; que Deus os perdoe por ousarem se rebelarem ao protagonismo do nascimento de Seu Filho, de nossa História de eternos martírios.
(Conto escrito por Carlos Brunno Silva Barbosa, escrito no segundo semestre de 2018)



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