Desde a retomada das postagens no blog agora em dezembro,
reservei o espaço a algumas solidões compartilhadas que há tempos queria
publicar (e há outras mil que pretendo trazer ao blog) e, apesar de também ter
vários textos meus que se destacaram nos últimos tempos, ainda não havia
trazido nenhum conto, poema, crônica ou prosa poética de minha autoria. Hoje,
às vésperas de mais um Natal, decidi mudar essa configuração: trago para os
amigos leitores um conto sombrio meu de Natal.
O nome do conto é “A crônica natalina não publicada de
Augusto Albuquerque”. Como o próprio título revela é um conto que finge ser uma
crônica – uma crônica fake, fictícia, ligada a fatos históricos da Velha
República, em especial relacionada a um trágico acontecimento real: o suicídio
do agitado escritor Raul Pompeia em pleno dia de Natal de 1895. Na época, Raul
Pompeia, autor do clássico “O Ateneu”, estava sendo perseguido e caluniado
politicamente e isolado por desavenças com famosos escritores devido ao
temperamento explosivo do escritor nascido em Jacuacanga, Angra dos Reis, mas
há algum tempo residente no Rio de Janeiro/RJ. Seu suicídio, realizado no dia
de Natal, ganhou força simbólica devido à data escolhida para sua
autodissolução e marcou seu posicionamento opositor aos rumos da Velha
República (uma espécie de imagem sonhadora do Brasil Republicano suicidara
junto com o seu principal intelectual defensor/articulador).
Esse acontecimento - todo aspecto louco/lúcido/radical de autodeterminação extremista de autodissolução - sempre mexeu comigo, por conhecer a vida e obras de Raul Pompeia e também por
experenciar, quando criança, a partida prematura de minha prima Eliete – também
escritora, mas jamais publicada – por um ato suicida parecido, mas sem o peso
simbólico do tomado pelo escritor angrense. Todos esses acontecimentos mais estudos
adicionais sobre os progressos e passos retrógados da Velha Repúlica influenciaram
o processo de criação de meu conto, que chegou a se classificar numa seletiva
de antologia natalina em 2018, cuja publicação ainda não chegou ao meu
conhecimento (como podem perceber por publicações anteriores minhas, aguardo um
tempo para trazer ao blog contos, poemas e crônicas classificados para
publicações; no caso do que publico agora, dei o prazo de um ano).
O texto natalino de hoje é o mais sombrio que publico nesse
período festivo desde o surgimento do blog (se preferirem algo mais alegre,
recomendo que visitem as postagens de natal de anos anteriores), mas vem em
data próxima ao trágico acontecimento histórico-literário que o influenciou.
Apesar desta ‘sombriedade’, espero que gostem, amigos leitores.
Feliz Natal e Arte Sempre!
A crônica natalina não publicada de Augusto Albuquerque
Há acontecimentos da História, assim maiúscula, que afetam
nossa história, essa aqui, bem mais próxima de nós, considerada menor, sempre
vista de forma minúscula. A que trago hoje ao conhecimento dos leitores deste
ilustre jornal envolveu a mim e a meu tio Alfredo Albuquerque na noite de natal
de 1896. O leitor mais perspicaz perceberá que já inicio minha crônica com uma
afirmação deveras questionável, pois, com o desenvolver do enredo, constatará
que os fatos já sofriam influências da noite de natal do ano anterior ao citado
por mim, mas justifico-me lembrando de que o ano de 1895 nada marcou à minha
insignificante pessoa; somente ao meu tio, talvez o verdadeiro protagonista
desta história, cujo protagonismo minha pena egocêntrica rejeite destacar -
assim são as verdades das afirmações humanas e das nossas histórias, maiúsculas
ou minúsculas: relativas, recheadas de análises contraditórias, confirmando que
o ato de errar, acertar e também errar acertando ou acertar errando é um ato
peremptoriamente humano. Abstrações à parte, vamos à história.
Tio Alfredo Albuquerque era um dos mais queridos parentes de
nossa família orgulhosamente republicana, principalmente por ser o primeiro a
ter ingressado com louvor nos Corpos Militares da Polícia alguns anos após a
Proclamação da República. Tal ato de meu tio rendia-lhe sorrisos graciosos dos
familiares mais exaltados com a história pregressa de luta pelo Estado
Republicano que os Albuquerque ardentemente defendiam há gerações. Mas, na
noite de Natal de 1896, não houve gracejos que retirassem de tio Alfredo o
estado taciturno, ensimesmado, no qual se prostara, entocado numa cadeira
afastada do clima festivo dos demais parentes.
Mamãe, considerando que tal atitude era causa de cansaço ou
de alguma ocorrência policial escabrosa na noite anterior (todos sabíamos que a
capital não era um modelo de cidade pacífica, principalmente nos agitados anos
do fim do século XIX, e, diante das turbulências políticas e revoltas no
Brasil, imagina as situações e crimes que nossos honrosos Corpos Militares
devem testemunhar, até nas noites de vésperas de Natal), pediu a todos que
respeitassem o recolhimento de meu tio. A súplica materna e a impostação
autoritária de sua voz podiam sensibilizar ou convencer a maioria dos parentes
ali presentes, porém soavam como um desafio a um diabrete de onze anos como eu.
Como assim o titio não quer comemorar o Natal com a gente, questionava meu eu
antigo. Assim que a vigilância constante de mamãe folgara, aproximei-me de tio
Alfredo.
O aspecto dele, outrora altivo, era aterrador. Há cerca de
um ano, eu reparara algumas mudanças físicas progressivas (ou regressivas?) em
meu tio Alfredo. Em seus cabelos loiros, insolentes fiapos brancos se
proliferavam e desvalorizavam o aspecto ainda jovial de seus saudáveis trinta e
dois anos recém completados. Seus olhos
verdes, antes quase infantis como os meus, adquiriram um incômodo brilho
melancólico, como folha de árvore caída em manhãs cinza de outono – pareciam
brincar ainda com o tempo, mas, na verdade, traziam apenas a passividade de um
morto, cujo corpo leve é faceiramente carregado pelo vento. Titio Alfredo ainda
brincava comigo como o tio mais divertido e traquinas que era, mas de um ano
pra cá parecia perder o ar pueril. E um diabretes de onze anos teimoso como eu,
sem parentes com idade equivalente a minha, não poderia perder o melhor
companheiro de travessuras. Mas, naquela fatídica noite de Natal de 1896, meu
tio tinha outros planos, nada divertidos.
- Eu não estava aqui no Natal do ano passado... – meu tio balbuciou
sem me olhar; parecia ciente da minha aproximação, mas ignorante da identidade
do interventor de seu alheamento.
Sua declaração não me trazia novidades, pois, diante dos
outros parentes chatos, fui o que mais sentiu sua falta na noite de Natal de
1895, o Natal mais sem graça de minha infância. Antes que eu lhe dissesse isso,
ele continuou:
- Eu estava trabalhando... Atendemos uma ocorrência, uma
senhora abriu a casa, estava desesperada, seu filho suicidara... Um tiro no
peito... Em plena noite de Natal... Seu nome era Raul Pompeia... era
escritor... – Nesse momento, baixou os olhos para o livro em suas mãos: “O
Ateneu”. Queria lhe dizer que não estava gostando da história que ele me
contava e que aquele livro na mão dele devia ser muito chato para deixá-lo
assim tão transtornado, mas tio Alfredo continuou a balbuciar, ignorando-me sem
me ignorar. – Um tiro no peito... No coração da nossa capital... Podia ter sido
assassinado... Em plena noite de Natal... O corpo estava no escritório... Eu
queria acreditar que foi assassinato... Eu investiguei por minha conta...
Artigos de jornais, depoimentos de amigos e vizinhos, até esse livro... Um ano
investigando... As evidências confirmaram o suicídio, os investigadores muito
mais graduados não tinham dúvida, sempre foi suicídio... Mas por que eu não
estava convencido? Foi assassinato, eu cismei que foi assassinato... – Aquilo
já estava me dando gastura, queria sair dali, o tio estava muito chato naquela
noite, mas ele não parava, a voz embargada, o bafo de álcool, tio Alfredo
estava muito chato e bêbado – A República está ruindo, mas ninguém quer me
ouvir... Não sei o que estou fazendo aqui... – O que era aquilo? Um poema que
meu tio declamava para um fantasma? Um poema muito ruim, por sinal.
Antes que eu lhe expusesse a minha crítica sincera à péssima
qualidade de seus versos e lhe informasse que queria brincar com ele, mas não
queria mais, porque ele estava muito chato, mas que, se esquecesse essa
história chata e esse poema ruim, eu esquecia também e a gente poderia
finalmente brincar, mamãe chegou me dando palmadas:
- Já não disse pra deixar o seu tio Alfredo em paz, seu
moleque!
- Ninguém quer me ouvir... – foram as últimas palavras que
ouvi de meu tio Alfredo, enquanto mamãe me arrastava pelas orelhas para longe
dele. Depois disso, fiz tanta manha que nem percebi quando titio Alfredo se
retirara da festa de Natal.
No dia seguinte, ninguém mais falou de tio Alfredo. O
orgulho da família tornou-se assunto proibido, assim como quaisquer críticas
aos rumos da nossa adorada República. Ninguém mais viu, visitou ou recebeu
visita de tio Alfredo também. Meu melhor companheiro de travessuras nunca mais
vi, eu o perdi. Foi assim que ganhei esse desejo triste de gritar em silêncio,
de brincar melancolicamente com as palavras.
Peço perdão aos amigos leitores deste ilustre jornal pela
crônica tortuosa desta edição de Natal de 1907. Depois de tantos anos, ainda
escrevo com o fantasma da criança que nada disse a tio Alfredo naquela maldita
noite de Natal de 1896. Assim se faz a História que marca a nossa história e
assim encontramos o sentido mais sincero, porém negado, desta data
contraditoriamente festiva: pela tragédia anunciada hipocritamente comemorada,
pelos não feitos diante do trágico previsto. A verdade, amigos leitores, é que
festejamos em todo Natal o nascimento de nosso amor ao martírio e poucos
entendem isso. Poucos, como Raul Pompeia e meu tio Alfredo Albuquerque,
entenderam tal significado; que Deus os perdoe por ousarem se rebelarem ao
protagonismo do nascimento de Seu Filho, de nossa História de eternos
martírios.
(Conto escrito por Carlos Brunno Silva Barbosa, escrito no segundo semestre de 2018)