Ontem,
começou a primeira rodada da tradicional Taça Guanabara (com um empate de 2 a 2 entre Botafogo e Portuguesa), fase do
Campeonato Carioca 2018 na qual os clubes considerados ‘maiores’ (Flamengo, Vasco,
Fluminense e Botafogo) e os clubes ‘pequenos’ melhores classificados no campeonato
do ano passado participam com outros dois ‘pequenos’ classificados na primeira fase,
Tal fato me fez lembrar do meu conto “Miserável Futebol Clube”, que posto hoje no
blog.
Livremente
inspirado na matéria “O jogo dos miseráveis”, de Flávio Adauto, publicada na
Folha de São Paulo, em 31/08/1975 (a reportagem inspiradora, que recebeu o Prêmio
Esso de Informação da época, mostrava que mais de 7.000 jogadores de futebol, em
21 Estados, viviam sem direitos previdenciários, apesar de pagarem impostos), “Miserável
Futebol Clube” narra as desventuras do universo futebolístico em 1975. Com este
conto, conquistei a honraria de “Destaque Sul Fluminense” no Prêmio Maria José
Maldonado de Literatura 2017, realizado pela Academia Volta-Redondense de
Letras.
Esse
meu conto premiado também pode ser encontrado na Coletânea Digital “Prêmio
Maria José Maldonado de Literatura 2017 - Antologia de Textos Premiados”, que
pode ser baixada no site da Academia Volta-Redondense de Letras (segue o link: https://www.avl.org.br/livros ).
Espero
que gostem, amigos leitores! Boa leitura e Arte Sempre!
Miserável
Futebol Clube
- Intão,
fessô?... O que o dotô disse? Eu vô ficá bão, né?
O rapaz finalmente acorda e me dirige a
palavra. Encontro-me de frente para o rapaz, de 20 atléticos anos, uniforme
sujo, corpo completamente suado, a respiração ainda arfante, no ritmo do jogo
que pra ele encerrou bem antes da hora. Em contraste ao porte extremamente
saudável do rapaz, o corpo exausto, atirado numa maca improvisada, sugere uma
implacável derrota, a perna esquerda irremediavelmente fraturada. Estamos
sozinhos no vestiário, os outros jogadores estavam muito apreensivos com a cena
e pedi que saíssem. A tragédia já trazia drama demais para mim e para o garoto.
Retomo comigo mesmo os lances anteriores:
o estádio pequeno, mas cheio de olheiros, jogo duro, placar empacado no zero a
zero, o garoto quis mostrar serviço; extremamente habilidoso, craque nato,
possível reforço de algum time de maior expressão, ele driblou o zagueiro e já
partia para o gol e para glória, até o outro zagueiro dar aquele carrinho
criminoso por trás. Apito do juiz, pênalti marcado, zagueiro adversário
expulso, confusão, mesmo os culpados querem ter razão e o garoto ali,
desmaiado, inconsciente da penalidade, fratura mais que exposta, chamo a
atenção do capitão da nossa equipe – vai ver o garoto, pô! -, corre-corre, cadê
o médico, caraca!, maca vagabunda, enfermeiros despreparados, “é o que deu pra
arrumar”, afirma o dirigente pão-duro, alguns jogadores finalmente se desligam
do frenesi do jogo – o camisa 10 tá mal, professor! Será que sai dessa? -,
respondo que não sei. E agora o garoto me encara, busca desesperadamente uma
esperança impossível em meu olhar falsamente firme.
Queria lhe dizer: já vi esse filme,
rapaz, você é mais um que vai pro chuveiro pra sempre e logo, logo perceberá
que nessa profissão não temos nenhum seguro, o governo planeja, o presidente da
República Ernesto Geisel diz que apoia uma medida de assistência ao atleta
profissional, diz que vai trazer uma solução pro desamparo da gente, mas até
agora tudo promessa, somos artistas ilustres de um circo de luzes sem brilho e
nesse miserável picadeiro da Confederação Brasileira de Desportos ainda não há
planejamento, só desorganização, você está perdido, irremediavelmente perdido.
Penso mil coisas em breves segundos, mas até o momento não lhe respondi nada, o
garoto quer uma resposta, Otávio, vai jogar um papo furado ou vai dizer a
verdade? Desvio o olhar, dou de cara com o calendário da Coca-Cola, com os
dizeres “Isso é que é” ao lado da marca do refrigerante, na parede do vestiário
– sexta-feira, 13 de junho de 1975, eu sabia que pôr o time pra jogar numa data
dessa ia ser de lascar -, finalmente respondo, opto pelo esquema mais covarde,
retrancado:
- Vamos ver, garoto, vamos ver...
Dá para perceber no semblante dele a
decepção com minha resposta. A face bronzeada e iluminada como se um sol sempre
traçasse um sorriso em seu rosto, o jeito brincalhão, sempre tentando manter o
ânimo dos colegas, apesar dos frequentes atrasos de salário, toda elegância
feliz do jovem se desfaz em uma ameaça de nebuloso pranto. Fraturado, esse será
o nome do garoto agora, seu nome de batismo é passado, esquecimento, nem o mais
fiel integrante de nossa humilde torcida se lembrará da breve passagem do rapaz
pelo nosso pequeno clube. Mas o garoto não desiste, finge que não manja ou
realmente não manja mesmo.
- Mas,
fessor... é só dá um “taime”, né...
- A fratura é séria, Beto...– desta vez, sai sem
pausa. – O diagnóstico do médico, apesar do exame não ter sido completo, não é
nada animador, rapaz. Ele te sedou e foi buscar a equipe médica, talvez você
ainda não tenha manjado, sua perna esquerda está jogada pro lado, quebrada, daqui
de onde vejo é como se ela estivesse fora do seu corpo. Acho que você vai ter
que começar a pensar num outro meio de seguir em frente fora dos campos. Sou
experiente nisso, garoto, sinto muito, mas acho que você vai ter que pendurar
as chuteiras... – eu mesmo me interrompo, aterrorizado com meu surto de
sinceridade. Deve ser cansaço, fico noites sem dormir e estou velho demais pra
prosseguir nessa carreira, nem o bicho do jogo do mês passado os desgraçados me
pagaram. Putz... Mas sou como o garoto... o que vamos fazer da vida sem a única
coisa que nos prestamos a fazer? Aposentadoria não temos, apesar de pagarmos
aquela porcaria de INPS. Como sobreviver sem esse maldito futebol? – Me
desculpe, Bebeto, estou sendo brusco com você, rapaz...
- Brus...quê,
fessô?
Ah, meu Deus, o que vai ser desse
moleque? Não deve ter nem o primário completo; uma vez que pedi aos jogadores
que anotassem frases de incentivo ao lateral Jorginho, que ficaria lesionado
por uns 3 meses, esse garoto demorou um século para anotar um “Milhoras, amigu” e mais meio século
para assinar o próprio nome. Tive que dar uma bronca pra acelerar o processo.
Ideia imbecil também aquela que eu tive... é, realmente preciso me aposentar, mesmo
sem aposentadoria pra tirar.
- Eu quis dizer: me desculpe se fui
grosso, Bebeto. – me esforço pela segunda vez para não esquecer seu nome, não
lhe adiantar o desamparo ao qual o garoto vai ser atirado.
- ‘tendi,
fessô!
Não sei porque esses moleques me chamam
de professor, tomara que essa moda não pegue em outros times; não tenho nada
demais pra ensinar a esses garotos, necessitam é de escola, alfabetização, um
professor de verdade. Mas o fascínio com a bola gosta de flertar com a
ignorância. A Loteria se aproveita dessa ingenuidade para faturar em cima
desses pobres coitados e não dar nem um bicho minguado pra eles. Nem pra mim.
Mal o Conselho Nacional de Desportos fatura uma merreca do montante fabuloso
que a Loteria arrecada.
- Me’rmão
tá no Framengo, fessor, tá de reserva, mas é fera e já ganha muito mais cruzero
qui eu por mês. Quem sabe dispois de mim recuperá vô pra lá...
Deve ser uma espécie de trauma, o garoto
parece estar em permanente delírio. Acabou, Bebeto! Agora é só desgraça:
primeiro Fraturado, depois Desempregado, caçando bico, sem outro ofício
conhecido fora das quatro linhas. Meu Deus, ele mal ouviu a última frase que eu
lhe falei! Ele me encara mais uma vez, contorcendo um sorriso dolorido, seus
olhos brilham. Me repito, de volta à retranca:
-
Vamos ver, garoto, vamos ver...
Miserável Futebol Clube... somos hábeis
atletas do jogo dos miseráveis...
Ouço ruídos de alguém entrando no
vestiário. É o doutor com a equipe da ambulância. Ao lado deles, Silvio, o
vice-presidente do nosso clube, consternado. Pelo jeito, o nosso presidente nem
quis dar as caras pelo vestiário hoje. Seja como for, aceno para eles e
disfarço o alívio de vê-los se aproximando; os breves minutos com o garoto
tiveram o peso de uma eternidade.
- O médico já está chegando, garoto. Vou
indo... Fica em paz e melhoras, rapaz.
- Fessô...
Mais eternidade pesando sobre meus
ombros cansados desse jogo truncado. Forço uma paciência que há tempos eu já
perdera:
- Pois não, garoto...
- E
o pênalti? O juiz marcô, né? Nosso ponta-direita qui bateu? Foi gol?
Sorrio. Como esse garoto ainda consegue
me fazer sorrir em meio a toda essa tragédia? Deve ser dom, deve ser...
- Sim, o juiz marcou e foi o Mazão mesmo
que bateu. E sim, garoto, foi gol, goleiro prum lado e bola pro outro. Foi gol
graças a você, garoto, Parabéns!
Bebeto sorri. Cumprimento o médico, sua
equipe e o Silvio. Antes de sair, cochicho nos ouvidos do último:
- Silvio, só te peço uma coisa: não
conta pra ele que, depois do pênalti, o time adversário fez dois gols e virou o
jogo, por favor. Se o garoto perguntar o placar, muda de assunto, finge que não
ouviu. Deixa o garoto curtir, pelo menos por alguns segundos, a vitória
efêmera.
Silvio dá um leve tapinha nas minhas
costas, em sinal de concordância com o meu pedido. O clube não nos paga
devidamente, mas, pelo menos, finge ser simpático aos nossos desejos mais
simples.
Dirijo-me até a saída. Será que passarei
a noite sem dormir mais uma vez?
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