Olá, meu estranho querido famoso George Michael,
Andei meio longe de você nesses anos todos, meu querido mito esquecido,
mas sua foto reapareceu na tela do computador em uma notícia de site que
informava sua partida nesse ano cheio de mortalhas e abutres de 2016. Consultei
várias páginas para conferir a veracidade da notícia, a princípio não acreditei
neste presente mórbido de Natal, mas você partiu e, mais uma vez, parti por
alguns minutos, num flashback de dançarinos cambaleantes que tentam passos
felizes em vão (pés culpados não dançam, você já tinha avisado, e eu me sinto
incapaz de seguir nesse ritmo trágico de 2016).
É estranho dizer isso, mas sua partida me machucou mais que as de
outros grandes mitos como Bowie e Prince; pode parecer cafona ou profano dizer
isso para aqueles que medem canções com réguas rígidas, mas já não me preocupo
mais com opiniões alheias, os cabelos brancos crescem sem nenhuma vergonha em
meu cabelo e eu preciso ser sincero, antes que eu me imploda em convenções de
polidez social num ano 'tragicruel' que tanto nos fragilizou.
Você sempre foi um sexy simbol estranho, que flertava com a câmera, o
sucesso e a polêmica; Margareth Thatcher, Tony Blair e George Bush recebiam
caretas suas, enquanto damas alienadas de todos os sexos se ajoelhavam diante
de sua beleza e de suas canções românticas; você foi o paradoxo único e máximo
do popstar bonitinho que cuspia punkmente contra o sistema enquanto
inicialmente nos ofertava músicas melosas e uma homossexualidade
temporariamente enrustida. Em minha juventude arrogante, não o compreendi; eu
era um idiota, George, com minha homofobia ignorante e minha pose de rebelde
roqueiro sem causa que muitas vezes confundia preconceito com atitude. Suas
hesitações em se revelar e minhas excitações com o machismo imbecil nos
afastaram e, por muito tempo, eu o envergonhei, me afastei de você, me esqueci
do herói que você figurou na minha infância.
Quando criança, fomos tão distantes e, ao mesmo tempo, tão íntimos,
George, você era um adulto de rosto jovial e eu, um moleque, uma criança
liricamente adulterada pelas suas primeiras canções de sucesso. Nas viagens de
férias para Guarapari ou para Angra dos Reis, meu tio João Gomes embalava
nossas jornadas on the road com as canções "Careless Whisper",
"Father Figure" e "One More Try" (essa a minha preferida)
gravadas do programa "Good Times" da Rádio 98 em saudosas fitas K7 - as
canções rolavam em ritmos sensuais e ao mesmo tempo melancólicos enquanto o
radialista, com aquele vozeirão característico, fazia a tradução imediata de
cada verso e era tão cafona e tão lindo ouvir as músicas assim e agora elas
sempre se repetem dessa forma em minhas lembranças como lágrimas tristes que escorrem
felizes e pueris no rosto enrugado. E, nossa!, isso é tão "One More
Try" e tão difícil e tão bonito e tão alegremente infeliz de se lembrar.
Naquelas viagens de carro com meu tio João Gomes, ele, professor 24 horas sem
diploma de magistério, aproveitava para me ensinar interpretação de textos, eu,
um pirralho, tendo a chance de me comunicar, opinar, responder-lhe perguntas
complexas como: "Afinal, Brunno, quem é essa 'professora' que aparece na
canção "One More Try" do George Michael?"; "Conta aí,
garoto, o que ele quis dizer com "Pés culpados não dançam" na
"Careless Whisper"?" e foi assim que eu descobri, aos oito,
nove, dez, onze, doze anos, que eu amava interpretar, eu amava as metáforas,
metonímias e eufemismos de suas canções, George Michael, e eu devo isso a você
e ao meu tio João Gomes, intermediador de nossa história de Amor (sim, Amor
maiúsculo, platônico, infinito e sem pecado). E agora é fim de 2016 e meu tio
anda bastante doente, lutando contra um câncer incansável, guerreiro
enfraquecido, mas ainda João Gomes, ainda guerreiro com uma dor insuperável que
também dói em mim, mesmo quando tento fingir que ela não nos machuca tanto
assim, e agora é fim de 2016 e você não é mais um adulto com ar jovial e eu não
sou nenhum menino encantado com minhas primeiras interpretações textuais e você
nem aqui está mais para eu lhe pedir perdão por ter me afastado tanto tempo de
suas canções, do meu eu menino (a porra dos pés culpados continuam impedindo
minha dança, um "Careless Whisper" interminável com aquele sax sexy que
transa com eternos flashbacks e não me deixa esquecer você e que você foi
embora e é mais outra droga de dor bonita nesta droga de ano que parece o
demônio que chora dos olhos do corvo de Edgar Allan Poe na tradução de Fernando
Pessoa), e agora é fim de 2016 e o verso "Goodbye" se repetindo na
canção "One More Try" porque neste último dia desse maldito ano ouço
a canção repetidamente enquanto escrevo essa
carta-elegia-não-sei-o-quê-não-sei-por-quê-de-tanto-desespero-loucura enquanto
o Ozzy, o cachorro labra-latas de minha namorada, meu amigão, às vezes se
tranca no banheiro por causa dos canalhas fogueteiros que ainda comemoram ano
novo com estardalhaços que incomodam os cães e às vezes paro de escrever para
vê-lo e deixo "One More Try" tocar e ficamos ali no banheiro, a
canção melancólica ferida por fogos de artifícios comemorando uma porcaria de
fim de ano cheio de crises, canalhice, abutres políticos e tragédias que não
trazem porra nenhuma pra comemorar ainda mais com barulhos que incomodam os
animais mais sensíveis que os parasitas seres humanos e tanta dor e tanta morte
desfilando com champanhes parcelados no 2016 que não acaba, cujo fim é
comemorado por uma cambada de gente que não liga e é melhor eu encerrar essa
carta, George, pois meus dedos já tremem de raiva por essa explicável, mas
descontrolada dor que me faz encerrar as postagens dessa porcaria de 2016 com uma
carta-elegia-não-sei-o-quê-não-sei-por-quê-de-tanto-desespero-loucura que eu
jamais pensei escrever. Que venha 2017, que essa porcaria de 2016 finalmente se
acabe, infelizmente cheia de infelizmentes, sem você, que venha 2017, "maybe
just one more try", talvez somente mais uma tentativa, né, George, é
melhor encerrar assim, com alguma esperança perdida, como você encerrou
"One More Try", mesmo dizendo antes "Goodbye", talvez
somente mais uma tentativa, mesmo depois do adeus.