Paulo Freire faria 100 anos neste ano (possivelmente, dificilmente fizesse diante de tantos surtos que encararia vendo os seus detratores no poder manipulando planos de 100 anos de atraso para educação). Além de escritor, sou professor. E, como professor, devo meus aplausos à educação como prática de liberdade de Paulo Freire; sim, ele é um dos poucos pedagogos que realmente me inspirou plenamente. E, diante de antipedagógicos planos de retorno às aulas presenciais, ouvindo a denominação de ensino híbrido ao que está longe do real e potencial híbrido e muito próximo do burocrático, new-skinnerano-fascistocrático e bizarro (se liguem: primeiramente atiraram pessoas ao vírus sem proteção numa subversão tosca da expressão “imunidade de rebanho” – que só acontece com vacinação -; agora, com menor visibilidade [porque, no fundo, no fundo, no fundo, pode confessar, ninguém liga bulhufas pra educação há muito tempo, desde que a família seja preservada com os filhos bem ocupados, atirados à responsabilidade de outrem], fazem escolas de repositórios pra politiqueiro poder se orgulhar enquanto a expressão “ensino híbrido” ganha deformações aliens; a educação nunca esteve tão mal educada, para felicidade dos infelizes governadores da Retrogracia Dominante), diante dessa porra toda (não gostou do palavrão, fui mal educado? Pois é... né... foda-se: falar atualmente de educação – como apaixonado por ela - me deixa bastante mal educado diante da farsa que se encena) e diante de um convite do escritor-amigo Alessandro, da Oficina Poesia & Criação, fiz uma crônica inspirada nas minhas idas e vindas com Paulo Freire.
Carlos Brunno
Silva Barbosa
Minha relação com Paulo Freire foi marcada
por idas e vindas, ausências e plenitudes.
Confesso que o conheci mais tardiamente
que esperava. Dirigindo-me ao túnel do tempo, nos redemoinhos que a memória
faz, meu eu presente, ao rever caminhos e descaminhos do meu passado, viajando
aos meus tempos de aluno, até ouve alguns sussurros de Paulo Freire que saíam
meio sufocados em algumas raras práticas pedagógicas. Mas basicamente vejo-me
orientado por um ensino mais tradicional e, muitas vezes, ainda engessado do tecnicinismo da recém-encerrada, porém,
infelizmente, jamais suplantada, era ditatorial brasileira. Salvos alguns
professores brilhantes, lutando desarmados contra tanques de automatização, fui
educado no regime mais tradicional e imbecilizante conservador possível, num
processo muito bem elaborado, competente, mas frígido. Minha formação escolar
me gera sentimentos contraditórios: não há como negar o enriquecimento
enciclopédico que me forneceram, mas também não se pode ignorar que me fizeram
um estudante coberto de conhecimentos extravagantes, untado numa forma
uniforme, fabril, mas falível em inteligência emocional e burro para
entendimentos de meu papel social.
Só vim a conhecer e reconhecer a educação
pela prática de liberdade de Paulo Freire na faculdade. E, mesmo assim, de
forma paradoxal: conheci o trabalho do formidável pedagogo através de aulas
expositivas e da leitura de seus livros, fiquei admirado, mas toda essa
revolução educacional fascinante ainda me era apresentada por acadêmicos
geniais, mas ainda entranhados de tradicionalismo e tecnicinismo. Muitas palestras e declarações apaixonadas sobre
Paulo Freire, mas tudo transmitido em estruturas rígidas, conservadoras e
consciente e inconscientemente conservantes. A educação preconizada por Paulo
Freire continuava sendo uma menina linda, cantada por todos, mas relação
prática íntima com ela, nada (você está na faculdade, rapaz, se vira!).
Ainda hoje, como professor, convivo com
este paradoxo. Conservo o legado e inspiração de Paulo Freire, tento, com os
meios parcos que possuo, praticar – este é o verbo, que fica só sendo
verbalizado, e raramente aplicado – sua educação libertária. Pratico algumas
adaptações de suas técnicas: evito livros didáticos como muletas, produzo meu
próprio material de acordo com o contexto dos alunos (em aulas iniciais, uso
gêneros como autodescrição em sites de redes sociais virtuais, autobiografia,
etc, para colher informações pessoais dos estudantes para melhor conhecimento
das turmas, numa tentativa de replicar a genial ideia freiriana de se
entrevistar e conhecer a realidade de sua comunidade escolar antes de elaborar
o seu material de aula), me desdobro com atividades que possibilitem que os
alunos tomem consciência de seus papéis sociais e tenham voz no processo
ensino-aprendizado, mas, de vez em quando, o próprio sistema de ensino e a
sociedade engessam os profissionais da educação, limitando-nos com preconceitos
e/ou sufocando-nos com papelada e documentações que empacam em tradicionalismo
e tecnicinismo. Confesso que, às
vezes, exausto, traio Paulo Freire e caio em facilitações, mas só damos um
tempo; depois voltamos e nos revoltamos aos princípios retrógrados que ainda
regem a educação brasileira.
E, nesses longos anos de harmoniosa
relação, com breves hiatos de instabilidade, Paulo Freire e eu xingamos os
opositores da educação libertária freiriana, que, em sua maioria, nunca leram
nada deste formidável pedagogo e ainda têm a audácia de fakenewar que a educação brasileira está no fundo do poço por causa
do magnífico – e agora centenário – pedagogo. A verdade é o oposto: a educação
brasileira está no fundo do poço, porque atiram a pedagogia freiriana como se
ela fosse um conjunto de frases motivadoras, ao invés de realmente praticá-la.
Salvo raras exceções, nunca tivemos a educação freiriana realmente praticada,
executada. Fica aqui a minha conjuração, a minha confessa inconfidência:
educadores, tiremos a educação freiriana do mundo das ideias e pratiquemos mais
a educação concretamente libertária. Só assim tiraremos as algemas que prendem
a educação brasileira ao fundo do poço, situação ignorantemente empoçada (e empossada)
por nós mesmos.
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