No último domingo, dia 13 de maio, foi Dia das
Mães. Devido a essa data comemorativa superespecial, lembrei-me de um texto que
eu escrevera há alguns anos atrás, utilizando como personagem narradora em 1.ª
pessoa a minha mãe Vanda Silva Barbosa.
Na época (julho/agosto de 2012), o Sarau Solidões
Coletivas vivia tempos áureos e tínhamos uma parceria fodástica com o outrora recém-ressuscitado
(hoje, mais uma vez, ‘falecido’) Jornal Valença em Questão (VQ). Meio que a pedido
(na verdade, fiz a sugestão, ainda meio sem saber como seria o escrito final, e
o pessoal do jornal abraçou a ideia e me cobrou) de um dos principais
articuladores do VQ na época, Vitor Castro, construí um texto de memórias,
inspirado nas lembranças de minha mãe sobre a Valença de sua juventude e início
de trabalho nas fábricas têxteis da cidade (na época, em ascensão; hoje,
fechadas). Para a produção do texto,
utilizei técnicas parecidas com as apresentadas na Olimpíada de Língua
Portuguesa e os métodos conhecidos dos escritores ghostwriters: entrevistei mamãe e, a partir das informações
retiradas da entrevista somadas à percepção de marcas coloquiais da fala da
entrevistada, elaborei o texto de memórias, me passando como
protagonista-narrador por minha mãe. Ela possuía histórias maravilhosas do seu
passado e considerei que tais narrativas orais mereciam ser passadas para a
narrativa escrita.
Abaixo os amigos leitores poderão ler o texto de
memórias que escrevi, o momento em que liricamente ‘fui minha mãe’. Espero que
gostem. Abraços e Arte Sempre!
Memórias de meus tempos de fábrica
Não que eu seja uma daquelas
pessoas que só vê o lado negativo das coisas; nem fica bem pra um ser humano
ser assim, né? Mas confesso que às vezes me dá uma sensação estranha, meio que
uma tristeza, quando vejo todas essas fábricas têxteis fechadas aqui em
Valença. Elas fazem parte de minha história, de minhas memórias. Sou de um
tempo em que essas fábricas moviam a economia da cidade; você saía de uma delas
e logo em seguida já arrumava emprego em outra.
Me lembro bem de meu início de
trabalho nessas fábricas. Acho que foi nos idos de 1969 quando comecei a
trabalhar em fábrica (me desculpe, mas faz muito tempo e a gente sabe como é a
nossa memória: às vezes ela engana a gente e recria as nossas histórias). Fazia
um ano que papai tinha morrido, éramos 11 pessoas na família numa casa grande
na roça e precisávamos ajudar nas finanças da casa. Como eu já tinha completado
14 anos, mamãe conseguira uma vaga na Fábrica da Chueke pra mim (sim, é aquela
mesma onde fica a Richards hoje em dia).
Eu morava no Cambota. Naquele
tempo, o bairro não era asfaltado; ainda havia até os trilhos de trem na
estrada. Como não havia mais trem por lá, colocaram até um ferro pra impedir a
passagem deles nos trilhos – minha irmã Maria e eu já nos machucamos passando
por ali naquela época. Tenho a cicatriz até hoje, bem aqui nessa perna, veja
só. Pra chegar na Chueke, andava quatro quilômetros e meio e trabalhava na
noveleira – aquela que fazia os rolos - das cinco da manhã até uma da tarde.
Trabalhei apenas um mês lá, pois mamãe achava ruim eu caminhar tão mocinha pela
estrada de madrugada.
Mamãe optou por me colocar na
Fábrica de Renda e Bordado, em frente ao que hoje é a Metamorfose, pois minha
irmã mais velha, a Yara (na época com 20 anos de idade) trabalhava lá e assim
poderíamos sempre ir juntas ao trabalho. Lá trabalhei na máquina automática de
fiação durante um ano e pouco. Todas as meninas da família, minhas irmãs,
trabalharam lá, com exceção da Dinah, minha irmã mais nova. Como eu dissera
antes, a história dessas fábricas fazia parte da trajetória de trabalho de
nossa família, de nossa luta pela sobrevivência sem papai aqui para nos amparar
– tínhamos que manter nossa casa, dar boas condições para mamãe e para nós
mesmas.
E deu tudo certo, graças a Deus!
Após a Fábrica de Renda e Bordado, trabalhei na Fábrica Progresso e na Santa
Rosa. Não faltava trabalho em fábrica naquela época.
Como os tempos mudam. Hoje, se
você não quer ficar desempregado, tem que buscar vaga no comércio, que, naquela
época, era quase inexistente. As pessoas saíam de Valença pra comprar as
coisas, nenhuma loja grande durava na cidade por muito tempo. Agora, está tudo
mudado: o comércio cresceu muito e todas as fábricas nas quais trabalhei
fecharam. Fico impressionada com essas mudanças bruscas; se bem que eu adoro
passar no centro e poder fazer minhas comprinhas sem ter que sair da cidade.
Como disse, não se pode ver só o lado negativo das coisas.
Ah, mas tinha uma coisa que eu
não gostava nem um pouquinho da época em que trabalhava em fábrica: como eu era
menor de idade, meu salário era muito mais baixo que de um trabalhador maior de
idade. E tinha que dar a mesma produção [atingir as metas] que os mais velhos,
veja só! Era uma pressão danada, eu me virava, até dava produção, mas não
passava da meta. As colegas que davam produção maior às vezes me ajudavam. Não
posso esquecer jamais da minha amiga Zilma, que, na época da Santa Rosa, dava
produção e ainda me ajudava pra que eu alcançasse a minha meta.
Atitudes como essa não acontecem
muito hoje em dia, com todas essas câmeras internas, com todo esse desespero
para se manter no emprego. Hoje é mais cada um por si. Mas acaba que, pensando
nas fábricas de Valença hoje em dia, não há nem união, nem cada um por si, afinal,
não há mais fábricas como antigamente por aqui. Às vezes, vem gente me dizer
que foi por causa do sindicato que as fábricas fecharam, mas eu não sou boba:
na década de 1990, a Santa Rosa, por exemplo, muito antes das brigas com o
sindicato, já funcionava meia boca, pagava os funcionários com atraso; esse
negócio de ficar culpando os outros pelos nossos próprios erros é uma atitude
que eu não aceito, sempre fui muito honrada e não gosto de mentira e covardia.
Que cada um admita o seu defeito, conviva com seus pecados e arrume um jeito de
encontrar a sua redenção.
É... parece que pecamos demais
como cidadãos valencianos e nada de acharmos uma redenção. Continuamos votando
errado, trocando voto por saco de cimento, dentadura, um dinheirinho e quem
paga a conta somos nós mesmos: aí estão as fábricas fechadas, Valença
estagnada, um cenário triste que não me deixa mentir. A cidade tinha tudo pra
dar certo, não tinha? Mas não dá. Ver as fábricas fechadas me faz pensar em
tudo isso, me faz relembrar – se a gente não tiver memória, como vamos
conquistar um futuro melhor para nossa terrinha? Mas, já disse isso e nunca
custa lembrar, não devemos trazer na cabeça só coisas negativas, a gente fica
até doente assim, não é verdade? Tenho fé em Deus que um dia Ele vai iluminar a
cabeça da minha gente e o povo vai se conscientizar. Sim, um dia, a gente vai
usar a memória pra funcionar, aprender com nossos erros e ver nossa cidade
voltar a crescer!
(Texto escrito por mim, baseado nas memórias de minhaa
mãe, Vanda Silva Barbosa, publicado anteriormente no Jornal Valença em Questão
n.º 43, de Agosto de 2012. Texto também acessível no link: http://blogdovq.blogspot.com.br/2012/08/vq-n-43-memoria.html)
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