Há alguns dias atrás, terminei de ler “Corpo Presente”,
primeiro romance do fodástico escritor carioca J. P. Cuenca. A obra, reeditada
pela Companhia das Letras, foi originalmente lançada em 2003 e marca o início
promissor da carreira de um dos 20 melhores romancistas brasileiros com menos
de 40 anos, segundo a revista britânica Granta (fato que, com certeza, vou
comprovar me presenteando com a leitura dos demais livros dele; esta primeira
obra foi adquirida por mim, durante o Londrix - Festival Literário de Londrina
2013, quando fui lançar meu sétimo livro “Bebendo Beatles e Silêncios” – um dos
meus maiores orgulhos daquela noite [e que me mantém aquele sorriso bobo alegre
iludido nos lábios] foi ter vendido um de meus exemplares para o próprio
Cuenca [ele deve ter achado o livro uma porcaria, mas nada maltrata o sorriso
bobo que ficou em mim rs] – e tive a oportunidade de assistir ao
mais-que-fodástico debate de J. P. Cuenca sobre sua escrita e a influência dos
lugares em sua rotina de “escritor viajante”).
Mesmo com todas as minhas super-ocupações de fim de ano
letivo de professor-poeta-pateta, li o “Corpo Presente” em duas noites,
hipnotizado pelo estilo de Cuenca. Aviso aos amigos leitores que a obra traz
uma leitura fácil, você se surpreende devorando rapidamente as páginas,
acompanhando o universo múltiplo de Carmen, Alfredo e do narrador (os três
principais personagens do livro), o que não significa que o livro seja fácil
[jamais confunda, amigo leitor, o estilo fluido, de leitura ágil, com livro de
conteúdo ralo e de fácil absorção]. O “Corpo Presente” nos leva a ambientes e
personagens multifacetários, que estranhamente nos são meros desconhecidos,
superficiais, e, ao mesmo tempo, nos são tão reconhecidos em nosso cotidiano,
tão íntimos de nossos desesperos e seres interiores. A múltipla personagem
Carmen, ora mãe, ora esposa, ora puta, é uma espécie de tábua de salvação para
um narrador perdido de corpo presente, tão multifacetário quanto a sua criação
(ora ele é amigo de Alfredo, ora mero observador, ora é um pseudo-ele mesmo,
ora é o próprio Alfredo), reflexo de um ser contemporãneo que passeia entre o
físico banal e o onírico perturbador.
A leitura desse livro mexeu mesmo com minha cabeça e os
amigos leitores que me acompanham sabem que, quando isso acontece, não sei ser
um leitor passivo, sou orgulhoso e aspirante a escritor demais pra deixar a
escrita de Cuenca me penetrar, sem exercer o processo contrário e ativo. Minha
escrita é vampiresca, preciso ressignificar tudo que leio e amo em uma nova
criação, absorvo as influências como se elas fossem as minhas únicas fontes de
vida e esperança e, depois, conforme aprendi com o mestre e amigo Drácula
(personagem-título da obra do escritor Bram Stocker, que, por sinal, também
estou relendo nesse processo de pré-férias, junto com a “Divina Comédia”, de
Dante, e as memórias inventadas de Manoel de Barros), após sugar os estilos que
admiro, passada – mas não dissipada - a fascinação pela obra, escravizo tudo a
meu gosto e ao bel prazer de tornar-me reinventor do que me atrai e realizo
minhas releituras subversivas poéticas, tento dialogar com o romance de Cuenca,
ao mesmo tempo, que imponho à literatura dele muito de meu próprio modo de
escrita, num ato paradoxalmente devoto e profano. Pra embolar mais ainda essa
transfusão desfigurativa fascinada literária, ainda misturei ao que ouvi na
palestra de Cuenca, à leitura recente da série de poemas "o livro dos espíritos de porco" do fodástico poetamigo Roberto Esteves Siqueira Jr. (do blog "poesia tem nada haver") e a meu retorno à leitura dos Infernos e Purgatórios de
Dantes, sem chegar nem perto do Paraíso sonhado pelo eu lírico do poeta.
Foi assim que surgiu o poema abaixo. Recomendo que leiam o
romance “Corpo Presente”, de João Paulo Cuenca, antes, pois tem tudo e nada a
ver com ele. Espero que gostem. Ao mesmo tempo, quero que se dane – preciso
absorver arte pra fazer arte e, assim, evitar o desejo de cortar meus pulsos
nessas angustiantes madrugadas apáticas de quase verão meio chuvosas.
Parafraseando Renato Russo, encontrei minha lucidez, cortejando insanidades.
Esse é o jeito que encontrei de sobreviver um dia a mais...
Arte Sempre!
Corpo Passado Pelo Presente A Vapor Na Tábua De Um Futuro
Atemporal
Estrofe 2001
Atrás daquela placa, antes dos celulares que filmam todo
sexo público,
Carmen transou comigo.
Depois daquilo, joguei o preservativo na caixa de
correspondência
da casa de algum burguês metido a besta.
Carmen riu de minha traquinagem
e seu sorriso jamais saiu de minha cabeça
(Quando estou triste, procuro a alegria de sua boca em algum
lugar
entre minhas sobrancelhas e a ruga que insiste em se
aproximar
de meus olhos velhos).
Estrofe 1979
Carmen me amamentava naquela humilde casa
e, mesmo com todo o seu zelo, eu ainda chorava,
acometido pela febre – uma pneumonia quase me levou de
Carmen
e talvez tivesse sido melhor assim;
me impediria de ver a Carmen que não mais existe
e nossa humilde casa destruída
para o surgimento de mais um arranha-céu
sem arquitetura
(Também me impediria de ver as nuvens, que Carmen
religiosamente admirava,
arranhadas pelo reflexo feio dos espelhos
daqueles estranhos prédios do novo Rio de Janeiro).
Estrofe qualquer número
Estranho masturbar-me no vazio.
Como posso gozar o nada?
Por isso te reinvento, Carmen,
pra que eu possa resistir,
mesmo que a resistência me pareça uma comédia infeliz,
cheia de antes, cheia e sem Dantes...
Como vou chegar ao paraíso, se nem consigo sair desse inferno
de carros parados no tráfego intenso,
gente acomodada no aborrecimento,
cidade sitiada...
(Só mais um pouco, Carmen, e explodo em teu corpo,
te engravido de palavras sem rumo
e aborto essa manhã sem graça).
Estrofe 1998
Encontrei Carmen em um boteco sujo;
era carnaval e eu usava saia bem curta,
um tomara que caia
e uma meia calça arrastão
quase completamente rasgada,
eu era uma autêntica vagabunda,
cheia de pinga e loucura,
enquanto ela trajava um short de jogador,
uma camisa do Vasco
e escondia na solidão da folia
a espera por um namorado que, naquela noite, não viria.
Não sei em que momento a conquistei,
nos beijamos e nenhuma droga inocente
feita com clorofórmio
seria capaz de me entorpecer tanto
quanto os beijos de Carmen.
Saí abraçado com Alfredo, que não havia entrado na história,
mas também usava saia – outra piranha perfeita –
e, comigo, comemorava a promiscuidade carnavalesca.
(Hoje vejo o uniforme surrado de um time quase rebaixado;
será que o Vasco e eu escapamos
de mais uma vergonhosa queda, Carmen flácida
de três filhos e sem nenhum tesão pelo estúpido marido?)
Estrofe 2013
Ah, Carmen é perfeita, completamente descolada,
seu esposo Alfredo tem até seus preconceitos,
mas é incapaz de prender a alma livre e desimpedida
que existe em todas que carregam o nome de Carmen.
Ela transa tudo: ménage a trois, webcam, passeatas,
protesta pela liberdade do mundo,
trancada na rede de sua internet libertária
(Há poucos minutos, descobriu-se flagrada
num vídeo tosco do www.clubedarapaziada.com,
mostrando sua falta de pudor na conexão hackeada
- coroa inteiraça – me sinto um cretino assistindo a tudo
isso,
mas vê-la nua e surpreendida me hipnotiza;
o computador trava, mas, dentro de mim, Carmen continua
conectada,
e assim sobrevivemos intocáveis
nos abrigos cheios de abismos de nossas casamatas:
Carmen, a safada inatingível e liberada,
e eu, o voyeur bobo e mais canalha
- espermas de tolices procuram ovários impossíveis
no ralo do desapego).
Estrofe 1986
Acreditava em Carmen quando ela dizia que Papai Noel existia;
isso até a escola,
até outra Carmen mais mocinha,
singelamente chamada de Carminha,
muito mais vilã que aquela da Avenida Brasil,
me dizer que o homem do saco de brinquedo nunca existiu.
Cruzeiros (num tempo em que os times que carregavam esse nome
não eram reconhecidos
como campeões brasileiros por antecipação)
não eram reconhecidos
como campeões brasileiros por antecipação)
e cruzados de direita me comprovaram:
Papai Noel só existia para os ricos de corações pobres.
Carminha realista se sobrepôs à primeira Carmen, sonhadora,
mas aquela segunda era mais linda e muito mais rica
e seguiria sua rotina destrutiva,
sendo minha ilusão mais desiludida
(Sobrou-me a sensação de sempre ser um garoto bobo,
cheio de sonhos tolos,
diante de todas as Carmens de minha vida).
Estrofe XYZ
Conheci Carmen numa festa gay.
Como cheguei lá, não sei;
poeta agnóstico hetero caucasiano
não fanático, mas meio apegado a velhas utopias
- talvez aquela fosse uma tentativa
de me inserir nas minorias,
talvez tentasse entrar na mídia.
O nome de Carmen era Alfredo,
mas Alfredo era palavra censurada,
possuía um corpo deslumbrante,
fenômeno dos avanços da cirurgia plástica no Brasil.
Ela era totalmente desejável,
sua oferta era irrecusável,
mas, mesmo assim, mandei-a pra puta que a pariu
(Hoje sonhos proibidos me despem
de tamanho preconceito
e, completamente extasiado,
peço desculpas para a mãe de Carmen,
mas acordo sempre completamente Alfredo
e qualquer tentação de Carmen é apagada
pelo crucifixo de um machismo satisfeito).
Estrofe virada
Rasguei todas as fotos de Carmen;
não quero vê-la nunca mais;
deve já estar dando pra outro aspirante a escritor,
aquela vaca!
Mas quem pasta sou eu...
Fumo mil cigarros
E, a cada tragada, tento resgatá-la,
mas Carmen é muito carne
pra ser fumaça.
Entre morrer mais apressadamente de câncer
ou viver como um boi manso e ignorante,
escolho a terceira opção:
volto pra Carmen, mas faço ela pastar;
se ela teve muitos caras,
pra mim agora tem muitas caras
- ah, rasgo a carne de Carmen em qualquer lugar!
Mas, após maltratar uma Carmen qualquer,
acendo um cigarro
e tenho a impressão de que a nicotina é incapaz
de sobrepor o cheiro da Carmen ilusória,
a Carmen de outrora,
a única Carmen que me faz respirar...
Ah, essa Carmen mais autêntica,
essa Carmen invenção tão carne
não é fumaça,
mas sempre me escapa;
mesmo amarrada em mim,
ela consegue me fugir
sem sair do lugar...
Pasto mansamente nos campos do desassossego,
carcereiro do inapreensível,
prisioneiro da liberdade infinita
da Carmen que persiste em minha vida desistida,
da Carmen que reside em minha falta de residência,
da Carmen que resiste em minha inexistência,
da Carmen eternamente em meu tempo jamais.
Estrofe Labaredas Divinas do Reino Sagrado de Carmen Cretina
Todo fim de ano, cansado de fantasmas,
prometo te largar, Carmen,
mas só sobrevivo a esse ar rarefeito,
quando me alimento de teu impossível;
me fodo se não te foder mais...
Eu te amo, Carmen,
e ver o brilho de teus olhos vazios
testemunhando os fogos de artifício
- alarmes de mais um ano no qual passaremos
nos fodendo e sendo pelo tempo fudidos -
me faz esquecer de querer te fazer morrer,
me faz esquecer que há tempos eu já me esqueci de viver,
me faz sobre-viver contigo, amém, Carmen, amém...
Só reitero o que disse pelo face. Fodástcio, FO DÁS TI CO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirGrande poeta das releituras reinventivas subversivas
Nossa Carlos!Tu quer acabar comigo?Esse sim foi um devaneio,um gozo,um insight loucamente desgovernado!!Me apaixonei pela escrita boemia...FODASTICAMENTE FODÁSTICO!!
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