2 de novembro de 2022, Dia dos Finados, 3 dias após a divulgação do resultado da acirrada eleição presidencial de 2022. O clima, meio chuvoso e bastante melancólico, como costuma sempre ser neste dia de luto, elegia e filosófica consternação, na atualidade turbulenta, ganha múltiplos significados: por mais que tentemos dizer que a democracia vai bem, apesar de respirar por frágeis aparelhos, parece que sempre estamos de prontidão para sua extrema unção, parece que finados e democracia são atualmente palavras relacionadas. E a chuva desse dia, que relembra os mortos de nosso dia a dia e rememora a necessidade de uma passagem sustentável pelo luto até a difícil aceitação, molha levemente os ombros dos eleitores do candidato vencedor como se lavasse as escadarias sujas de uma igreja ou templo, como se banhasse com tímida esperança todo peso carregado durante muito tempo até a difícil e muito aguardada vitória, mas também encharca as capas e corpos dos eleitores do candidato perdido perdedor que bloqueiam estradas, saídas e entradas de um novo despertar – nestes eleitores, sonhadores de antigos pesadelos confundidos com utopias inexistentes, as gotas são pesadas; mesmo suaves, parecem furiosas, ameaçadoras, como ovelhas que rosnam como lobos quando acuadas, quando se sentem intransitivamente desesperadas. Neste 2 de novembro de 2022, neste Dia de Finados, há muito mais que pessoas mortas, há ainda vida em transe, há purgatório, sentimentos mal resolvidos, futuros trafegando entre céus e abismos, permanecendo neste entre, nem elevado, nem caído, apenas uma incógnita indecifrável porque as pessoas-problemas da equação não se unem para resolver a questão, como se cabo de guerra pudesse substituir as operações básicas racionais da civilidade, reflexão, autorreflexão (sim, seja de qual lado estiver, a fissura e a questão deve ser contemplada e autocontemplada por todos), adição, subtração, multiplicação, divisão, comprovação, constatação, união e entendimento.
Há anos, nós, brasileiros, estamos dando murro em ponta de faca, nos dividindo não como múltiplos seres pensantes com pontos de vistas opostos e a postos para o debate, mas feito facções fanáticas de torcidas furiosas com armas (visíveis ou ocultas) em punho, empenhadas em armar brigas (mesmo se me disseres ser da paz, sabe que alguma provocaçãozinha você não resistiu e praticou, despertando gatilhos de armas, que, às vezes, por arrogância disfarçada de altivez, você nem observou. E o outro, estouradaço, nem sabe como tudo começou. E todos juntos, sem pensar, pescados pelos ganchos do matadouro da inconsciência virulenta coletiva que vai completando mais de 9 anos de eficiente devastação programada). E todo 2 de novembro, como o de 2022, há mais de 9 anos, tenta trazer chuva ou sol para lavar ou secar o sangue que perdemos a cada novo murro na ponta da faca (mudamos a forma e a posição de socar, mas, se continuamos acertando a lâmina, vamos continuar a sangrar). Há mais de 9 anos, nós sangramos, sangramos e continuamos a sangrar, e não tem operação, curativo, remédio ou milagre que estanque uma ferida tão constantemente aberta. E não tem finado que descanse em paz se finado nunca está, se mantemos a obsessão, se não resolvemos os casos. Temos que parar de esmurrar a faca.
Sabe, eu tenho me sentido esgotado. Mesmo quando não faço nada, nada, me sinto cada vez mais esgotado. Essa sensação de lutos mal resolvidos, mal enlutados, essa percepção de constante estado de confronto, essa sensação de andar sempre numa multidão bipartida, tem sido difícil suportar o falecimento de uma antiga poesia inventada que caminhava entre nós, brasileiros, e que, agora, vive exilada em algum lugar bem distante de nosso país. Dias de finados sempre tiveram pesos sutis como lágrimas gentis, mas, de alguns anos pra cá, parecem estar com cargas extras, como se velassem um morto-vivo, uma agonia que não para nem pra se cansar de vez, nem pra definitivamente descansar. Mas, mesmo esgotado, ainda espero (e, por meus parcos líricos meios, tento provocar), ainda anseio, todo ano, rever o 2 de novembro como ele outrora foi e como deveria ser: o Dia dos finados, o Dia das Elegias mais Lindas. Mas ainda não foi em 2022, ainda não foi desta vez – como nos anos anteriores, 2 de novembro, infelizmente, foi o Dia dos finados que não finaram, dos mortos-vivos que agonizam por um mundo melhor, o dia da Agonia Temporariamente Infinita mais Esquisita. Sei que 2 de novembro de 2022 tentou, mas nós, brasileiros, precisamos colaborar, pois ainda não foi desta vez. Espero que, em 2 de novembro de 2023, essa agonia temporariamente infinita passe e que o dia volte a me inspirar e tocar como a canção “Elegia”, de New Order, ou a “Canção pra você viver mais”, de Pato Fu, e não como os 9 círculos do inferno de Dante.
Quem sabe, amanhã, nós, brasileiros, após termos estragado mais um Dia de finados, finalmente, não tomamos orgulho de toda nossa cara (porque vergonha na cara já virou face de tanto que a postamos na nossa selfie), velamos respeitosamente nossos mortos, pedimos perdão aos nossos fantasmas e voltamos a amar nossos próximos como se não houvesse amanhã?
E, para não deixar a postagem sem um poema, trago um poemeto fragmentado, “Este se”, de minha autoria, publicado em meu nono livro “O nada temperado com orégano” (2015). Esse poema deveria ter sido publicado no meu quarto livro “O último adeus (ou O primeiro pra sempre)“ (2004), tanto que aborda a temática de saudade, explorada em minha quarta obra. O poema, escrito após o falecimento de meu tio Darlei, o qual eu visitava frequentemente na UTI, juntamente com meu tio João Gomes, sempre teve um caráter meio incompleto [a incompletude vem com certeza da partida brusca de meu tio e a sensação de culpa por não tê-lo visitado mais uma vez antes de sua partida – o tio João sempre me chamava, mas no convite mais recente, estava muito cansado do trabalho e acabei deixando minha terceira visita para um depois que não haveria] e acabou ficando meio deslocado nas divisões de capítulos de meu quarto livro, culminando em sua retirada e sendo publicado muito tempo depois. Como vivemos uma Era de Se no Brasil, acho que o poema se encaixa com a crônica postada e com o nosso contexto.
Este se
Carlos Brunno Silva Barbosa
Se eu não tivesse desaparecido
talvez você não visse a minha última imagem
como um sonho
e não voltasse a dormir.
Eu queria tirar essa culpa, este se
dizer: não! foi tudo um pesadelo
mas você não está aqui
pra me acordar.
Ficou muito bom...meu filho!!
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