Uma frase que se tornou amplamente popular no século XXI e que
me ressuscita gastrites milenares na alma pensante é a frase feita “Os tempos
são outros e você tem que se adaptar”. O modelito camaleão pra toda obra virou
sucesso na moda de todas as estações, principalmente como meio de manobra para
manutenções de históricos sistemas de exploração e, mais atualmente, para
sustentação de métodos contraditórios como a “imunidade de rebanho” (atira-se
os animais aos perigos e os sobreviventes, pelo próprio fato de sobreviverem no
ambiente de provável massacre, trazem a solução vitoriosa para vencer os obstáculos
impostos, fato que deveria justificar todo e qualquer sacrifício, mesmo que
numeroso).
Usando-me da ironia (sim, hoje em dia, temos que explicar
até o uso da figura de linguagem mais simples, antes que alguém copie e cole e
diga que você disse o que não disse), a frase “Os tempos são outros e você tem
que se adaptar” é ótima! Pensemos no marido, esposa, namorado, namorada, que,
incompetente em sugerir uma relação mais aberta de forma sincera, é pego pelo
outro/outra em flagrante relação íntima (não mais) secreta com outra pessoa. Basta
declarar “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”, atira a palavra “traição”
ao index do tabu contemporâneo e implanta a relação mais aberta (só para
ele/ela) que, durante tempos, ele/ela não teve coragem e competência para
sugerir – desmascarado(a), ele/ela mascara, com precisão, eficácia e
conveniência, sua incompetência particular. Outro exemplo muito “legal” e mais
comum: o patrão/patroa precisa que seus empregados trabalhem acima de uma carga
horária humana para que a empresa/instituição sobreviva à voracidade autômata(dora)
do mercado selvagem. Sem competência para criar meios alternativos mais
humanistas e com muita impotência e bastante covardia para contradizer a agressividade
robótica e imediatista do mercado, basta ao patrão/patroa declarar ao
empregado/empregada “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”. Pronto: a
histórica palavra “escravagismo” vai ao index do tabu contemporâneo e
implanta-se a relação de trabalho moderna desassociada à exploração escancarada
que ela impõe – despido(a) de soluções criativas humanistas, o patrão/patroa usa
a veste dominatrix sem necessidade de
que a relação de dominação/submissão no trabalho seja consensual, torna-se empreendedor/empreendedora supermoderno(a),
negando suas incompetências, impotências e covardias diante das exigências
maquiavélicas do mercado desumanizador. Ou seja, “Os tempos são outros e você
tem que se adaptar” é ótimo... caso você precise disfarçar imediatamente uma
impotência constrangedora e, claro, caso seja você o emissor (omissor) da
frase, e não o receptor (receptáculo vazio, nos termos do outrora superado
Skinner).
Vejamos algumas particularidades semânticas da estrutura
morfossintática da frase feita “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”.
Temos uma conjunção “e” que pode indicar adição, o que não ofereceria nenhuma
possibilidade de reflexão; propõe uma soma de acontecimentos e ações que devem
ser seguidos de modo autômato, como se fossem acontecimentos e ações naturais,
que não exigem pensamentos profundos para serem realizados – vai, robô transformer,
é hora de morfar sem pensar! O “e” também pode ser pensado como conjunção
conclusiva, o que nos traz um paradoxo filosófico, afinal conclusões devem ser
tomadas após reflexões e a conclusão trazida na sentença “Os tempos são outros
e você tem que se adaptar” nos traz uma imposição, sem possibilidade de
abstrações reflexivas. Agora observemos a oração “e você tem (...)”.
Sintaticamente, você é o sujeito simples, ok, mas, praticamente, o “você” não é
um agente ativo, precisa aceitar passivamente a ação de ter (que em nenhum
momento propõe ser sinônimo de possuir, e sim de ser obrigado) em uma oração
que aparenta ser ativa, mas é disfarçadamente passiva. Resumindo: “e você tem”
em conjunto com “que se adaptar” não tem nada de ativo, o sujeito não age, mas
recebe a ação, o que dá à sentença um caráter imperativo, é uma ordem, você é
obrigado a fazer – vai, robô transformer, é hora de morfar, mesmo que você não
seja robô, nem transformer, nem saiba ou queira morfar. Ou seja, até quando se
analisa o período “Os tempos são outros e você tem que se adaptar”, há máscara,
polidez linguística, disfarce – quem profere a sentença quer mandar, se impor,
e não tem nem coragem nem potência nem sinceridade de expor de forma transparente
que está mandando, se impondo e exigindo a sua submissão incondicional, sem
desejo de que você reflita sobre a questão.
Entendo a parte “Os tempos são outros”. Os tempos são
realmente outros: discursos de ódio e de violência escancarada são amenizados
com disfarces de liberdade de expressão, preconceitos enraizados deixaram de
ser hipocrisias cordiais para serem considerados como ‘autênticos’ elementos do
conservadorismo ‘restaurador’ ‘inerente’ em todo patriota para disfarçar a incapacidade
de superarmos nossas mais nojentas misérias e mazelas íntimas que desfazem todo
perfil mascarado civilizado que exibimos com extremo mau gosto, negacionismos autoritários
são vistos como marcas positivas para afirmação de identidade para disfarçar a nossa incapacidade
de encarar a realidade e o quanto somos negativos e torpes para a vida
consciente e pacificamente conflituosa humana, o imediatismo histérico por
soluções passageiras substitui planos a longo prazo detentores de soluções mais
permanentes, amparado no disfarce do mau uso do verso de Cazuza “O tempo não
para” (e só uma digressão: o sumiço do acento diferencial do verbo parar na
terceira pessoa tem um efeito interessante, né, pois iguala uma ação [para] que
varia entre a intransitividade – independência de objetos – e a transitividade –
ação direta sobre objetos - a uma preposição [para] que só serve de ponte
passiva para ligar palavras e orações subordinadas, formando doces relações
interdependentes). Sim, os tempos são outros e vamos de mal a pior, praticando a
nova velha tendência do louvor ao retrocesso com nomes novos e amenizadores para
esconder sua aberração retrógrada.
Agora “E você tem que se adaptar”? “Tem”? “Se adaptar” a
isso? Ora, para todos que me atiram a sentença, vão à merda (estou usando a sua
‘liberdade de expressão’, gostou? “Os tempos são outros e você tem que se
adaptar”, vai ‘sifudê’ e leva o troco, viu, foi bom pra você?)! “Máquina
arrogante! Adaptação não basta! Você precisa ter respeito à vida! E a coragem
de ter esse respeito!” – são frases proferidas pelo personagem dos quadrinhos
(referência nerd detectada) Capitão Britânia, na fase do genial roteirista Alan
Moore, quando o super-herói enfrenta “O Lixo Que Andava Como Homem” em um “mundo
distorcido” (história originalmente publicada em “ Marvel Super-Heroes 378”, de
outubro de 1981). É originário de uma ficção, é só nerdice minha, ok, você
venceu. Mas como explicar a estranha sensação de que as frases proferidas por
ele não te incomodaram com aquele desconforto peculiar de que talvez um
personagem fictício do início da década de 1980 pareça citar frases extremamente
convenientes e de possível reflexão para a realidade atual? Como explicar que o
“mundo distorcido” que um personagem fictício do início da década de 1980
estranha pode não ser tão distorcido assim, se refletirmos as situações atuais
do nosso planeta ‘modernoso’? O quanto a ordem de adaptarmos a nossos tempos ‘outros’
omite a falta de respeito à vida e, principalmente, a coragem de ter esse
respeito, implícita na frase feita “Os tempos são outros e você tem que se
adaptar” (outra digressão: como essa frase é parceira da também idiotizante “É
melhor já ir se acostumando”, né?)? Quantos Lixos que Andam como Homens nos
lideram e/ou organizam os rumos de nossas vidas nos metralhando e proporcionando
o compartilhamento submisso de frases feitas do tipo “Os tempos são outros e você
tem que se adaptar”?
Entendam, não tenho nada contra o ato de se adaptar. Mas,
como bem disse o Capitão Britânia (que deve ser super-herói e fictício principalmente
pelo fato de entender de distorções de realidade e por ser um capitão
consciente e humanista – isto, nos dias de hoje, é raro e ainda não vi nenhum ‘novo
conservador’ querendo restaurar essa consciência e humanismo), a adaptação não
basta! E frases feitas nos obrigando a nos adaptar não bastam mais ainda! Adaptar
é uma ação que pode servir como sobrevivência imediata para respiro de uma
situação que precisa ser refletida futuramente, muitas vezes uma atitude
primária necessária para superação emergente de um obstáculo imposto, mas
jamais deve servir como um pressuposto permanente imbecilizante para subserviência,
sub-vivência ou bajulação dos absurdos e autoritarismos aparentemente inflexíveis
cotidianos.
Não necessitamos de frases pertinentes e impositórias.
Necessitamos de reflexão, de respeito à vida e de coragem de ter esse respeito
(sim, eu concordo com o Mito Capitão Britânia). Os tempos são outros, ok, e nós
(não só você, eu ou outrem, todos nós) temos que refletir, como seres
pensantes, que possuem capacidades e possibilidades de evolução, precisamos
refletir, planejar, pensar, querer saber, buscar múltiplas soluções e
possibilidades, e aí sim, decidir se vai se adaptar ou não – sim, é uma opção,
provém do livre arbítrio (lembra disso, religioso cidadão?).
Os tempos são outros, precisamos pensar e planejar em
maneiras para que esses tempos ‘outros’ não se tornem tão ou mais parasitas à
vida que outros tempos outros que já vivenciamos, aí sim, com muito amor, respeito
à vida e coragem para ter e lutar por esse respeito, talvez se adaptar, mas sem
deixar de analisar outras posteriores saídas. Quanto aos que proferem “Os
tempos são outros e você tem que se adaptar”, vocês têm que se olharem nos
espelhos, observarem as fragilidades e impotências furtivas implícitas em suas
posições e pensarem antes de soltarem frases feitas vazias e evasivas (como
vocês podem e devem julgar e se defender, usei, como usam, uma frase feita
pertinente à minha argumentação e impositória para disfarçar minha impotência
de prego cansado de apanhar diante de quem sempre foi martelo que nunca cansou
de bater; é minha maneira polida de encerrar meu texto mandando-os à merda mais
uma vez).
👏👏👏👏👏👏👏👏
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