Em tempos de quarentena, pandemia, doença nova, isolamento forçado pelo bem coletivo, novos escritos doentios, novas solidões coletivas e desafios criativos me imponho. Eis os 19 microcontos doentios com até 140
caracteres (sem contar o título) em homenagem (?) à quarentena criativa
provocada pela pandemia de coronavírus (COVID-19) que escrevi nesta manhã
mortalmente ferida por um estranho sol paradoxalmente cheio de vida:
Misantropo
O pânico da pandemia não o atingia. Ao contrário: ele se divertia. Desde
que ela chegara, não precisara mais procurar amigos que não tinha.
'Disolado'
Com o anúncio da pandemia, trancara todas as portas para proteger seus
velhos queridos. Depois, chorou convulsivo: há tempos, vivia sozinho.
'Desconciliação'
Desde a pandemia, ousou reatar com o telejornal. Aceitou toda ordem e abuso
verbal, mas pirou com a oferta de viagem no intervalo comercial.
Personificação
A pandemia se embriagava com a última gota de álcool gel na garrafa
infectada, enquanto a pobreza espirrava sobre a carteira esfarrapada.
Desclassificado
Comemorou em vão a folga recebida durante o avanço da pandemia:
desempregado não festeja tais mordomias.
'Desdesolada'
Confessou para as paredes que gostara da pandemia: com a quarentena
coletiva, não se sentia mais sozinha.
Páthos
Abraçou o coronavírus com afinco: desde a viuvez, não tivera um
relacionamento tão íntimo.
Profano
Profanou a quarentena para ir à igreja, pois era muito beata. Pediu a
Deus uma terna palavra. Coronavírus, o novo filho, deu-lhe a graça.
Caridade
Diante da pandemia, superfaturou o preço de todos os produtos de
primeira necessidade. De orfandade, não morre o capitalismo selvagem.
11.441/07
Sem beijos, nem abraços, se cumprimentaram. Graças à pandemia, com o
divórcio consensual finalmente concordaram.
Abusivo
“Se não posso tocá-la, ninguém mais pode” - a cada dia de quarentena que passava, o
coronavírus mais parecia com o seu ex-marido.
Paramnésia
De pandemia de coronavírus, ele quis compará-la. Tantas vezes viu a
musa desejada e jamais pôde tocá-la...
'Borgesnóstico'
Enquanto a pandemia de coronavírus despertava um escarcéu, o velho
leitor adormecia seus olhos na biblioteca de babel em serena lua de mel.
Bufão
Infidelíssimo, usou a pandemia de coronavírus como justificativa safada
para não beijar a esposa desconfiada depois que voltou para casa.
Irresistível
“Não sou tarado”, jurou o velho suicida, “mas, nesses dias de pandemia,
não posso ver ninguém resfriado que já abraço, beijo e fico pelado!”
'Glennclosido'
Foi culpa da pandemia de coronavírus. Como é gostoso pensar no sexo
esquecido quando o toque outrora banal lhe é proibido!
Epifania
Após o espirro – seria coronavírus? -, finalmente entendia: da
realidade doentia, sempre fugira, mas do seu eu doentio jamais conseguiria.
Pós-moderno
Sem pátria ou passado, vagava fragmentado por corpos estranhos em busca
de uma identidade que não possuía. Era literatura ou coronavírus?
COVID-19
Mesmo isolado e psicotropicamente anestesiado, o hipocondríaco insistia:
de coronavírus ele morria dezenove vezes por dia.
Ah, o Poeta que a tudo anda atento. Penso, e não entendo, como pode o Poeta a tudo ficar atento. A resposta deve ser simples. Quem, senão o Poeta, para nos curar de momentos assim?
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