quarta-feira, 20 de julho de 2022

Uma história de quando não se tem uma história para contar: Conto de sardas


Vivo, neste momento, o período de recesso escolar, aproveitando o momento de folga do cotidiano voraz em aventuras boêmias como se não houvesse amanhã. Ontem reencontrei grandes amigos, como Ronaldo Brechane, Osvaldinho, Lucimauro Leite, Andreia Nobre (quase de partida de volta à Bélgica), entre outros, em encontros fugazes, rápidos (alguns mais ligeiramente demorados), permanentemente marcantes apesar de toda efemeridade, enquanto estava em uma mesa de bar na Rua dos Mineiros, no centro da cidade, no coração da moderna província sempre querida. Hoje é o dia em que comemoramos o Dia da Amigo. Os 3 fatos se misturaram em minha mente e reforçaram a minha decisão do que postaria hoje, em mais um eterno retorno ao blog, volta e meio injustamente deixado de lado (mesmo com todas as ausências, juro que amo e sinto falta de estar mais constantemente neste lar virtual lírico solitário coletivo).
Quadro "Consumidor de Absinto",
de Pablo Picasso

Hoje trago um outro conto meu, inédito no blog, mas premiado no Prêmio Maria José Maldonado de Literatura de 2019, da Academia Volta-redondense de Letras: o conto chama-se “Conto de sardas”, traz de volta o personagem-narrador Artur do conto “In Paticence”, já publicado aqui no blog (no link:
https://diariosdesolidao.blogspot.com/2022/04/meu-conto-quase-inedito-do-tempo-em-que.html ) e envolve boemia, amizades, loucuras efêmeras e permanentes, metanarrativa (uma narrativa que ousa falar sobre o próprio ato de narrar) e a busca de contar uma história que não tem história pra contar.
Como fiz quando postei “In Paticence”, deixo algumas indicações de trilha sonora para o “Conto de sardas”: para este, recomendo “Acrilic on Canvas” e “Teatro dos vampiros”, de Legião Urbana, “Eu nunca disse adeus”, de Capital Inicial, "Das coisas que eu entendo", de Nenhum de Nós, e “Shine On You Crazy Diamond”, de Pink Floyd.
Boa leitura, Boemia e Arte Sempre, amigos leitores!

Conto de sardas
Carlos Brunno Silva Barbosa

Tenho comigo a ideia de que a escrita e a memória se preenchem com paradoxos e vazios. Uma lembrança antiga: meu amigo José Silvério, popularmente conhecido como Zé nos círculos artísticos iluminados pelo anonimato, me dizia que fazer contos é fácil, pois sempre temos uma história pra contar ou inventar. “O que importa é a forma como se conta, Artur”, filosofava Zé, enquanto degustava uma dose de cachaça e solidão. Zé se tornava lúcido quando flertava com a insanidade e, quanto mais comunicativo parecia, mais dialogava comigo como se comunicasse consigo mesmo. “E quando não se tem uma história para contar?”, desafiei. Zé acabava de sorver mais uma dose e descia o copo para a mesa lentamente como se refletisse. Olhava-me como se me percebesse pela primeira vez à sua frente. Talvez pela primeira vez se percebera não tão solitário como ele e eu o imaginávamos. “Vou pegar mais uma dose, Artur.” Levantou-se e foi ao balcão. Quando voltamos a falar, minha pergunta permanecia sobre a mesa, mas a ignorávamos.
Anteontem: de tanto flertar com a loucura, Zé passou a transitar pelas ruas feito doido varrido. A insanidade aceitou o convite de namoro que ele tanto lhe ofertara. Zé ganhou uma namorada e eu perdi um amigo: ele não me reconhecia mais. E, mais solitário que nunca, Zé permaneceu acompanhado de amigos invisíveis. Personagens o perseguem, há milhões de histórias nas páginas invisíveis que Zé escreve, mas ninguém consegue ler suas obras, pois sua arte de vanguarda está além de nossa compreensão. Sua nova forma de contar histórias tornou-se genial demais para todos nós. Mas este conto não é sobre o Zé.
Digressão: já estou no terceiro parágrafo de meu conto sobre sardas e, ao invés delas, dessa história ‘fácil’, me perco em labirintos de lembranças do Zé. Paradoxos e vazios... Sim, esta história é sobre sardas e a dificuldade de contar ou inventar uma história que não aconteceu.
Ontem: Estava no mesmo bar onde Zé e eu nos encontrávamos. Não pensava nele, mas Zé permanecia ali na cadeira vazia, na minha ausência de pensar nele. Na mesa ao lado da cadeira vazia onde Zé se sentava, duas garotas – uma loira e uma morena – aparentemente embriagadas sussurravam e sorriam para mim, brincando com meu ar distraído.
- Pensando na morte da bezerra, menino? – a loira me perguntou e a sua expressão me soou tão antiga, tão fora do tempo, mas me realinhou ao imediato; eu não estava mais distraído, não mais fora de mim. A loira tinha um sotaque peculiar, meio nordestino, e um sorriso travesso nos lábios. - Está sozinho aí... Se achegue pra nossa mesa, venha!
Retribuí com um sorriso tímido e levei meu copo, meu corpo e minha falecida distração à mesa delas. Puxei a cadeira vazia, onde o Zé se sentava. Por que não levei a minha cadeira ao invés de puxar aquela vazia? Comodidade ou cumplicidade inconsciente com amigos fantasmas? Não sei... Paradoxos... Vazios... Distração.
A loira era falante, contou-me que chegara há pouco a Shangri-lá, citou os afazeres da mudança, o seu gosto por lugares novos, por conhecer gente nova – nesse momento, tocou levemente na minha mão estendida sobre a mesa. Seguiu contando-me sobre o prazer de ter encontrado, logo que chegou à cidade, uma “amiga, uma alma irmã, a Mônica” e me apontou a morena ao seu lado. A loira falava de tudo, acho até que citara o seu nome pra mim, mas me distraí. Por mais que a loira brilhasse em seu palco particular, minha câmera de atenção a colocava em um ponto cego. Mônica, a morena, quase monossilábica na conversa, foi e ainda é a dona do filme dessas lembranças.
Havia sardas sutis, mas marcantes, na região superior da bochecha de Mônica, quase alcançando a parte inferior de onde se localizava seus olhos oblíquos. Nova digressão: seriam os olhos dela mesmo oblíquos ou essa observação é mais uma impressão ilusória da memória, proveniente da releitura recente de “Dom Casmurro”? Não sei... Mais uma vez, não sei... Só sei que aquelas sardas, as sardas de Mônica, tão próximas da ameaça do toque, tão longe da concretização dos anseios das minhas mãos, hipnotizaram a minha atenção. Eram como diamantes brincando de esconde-esconde sem realmente se esconderem em seu rosto trigueiro. Eram sardas preciosas, reluziam ao mesmo tempo em que disfarçavam sua luminosidade. Aquelas sardas, ah, aquelas eram estrelas vividas, constelações cheias de histórias pra contar ou inventar no céu sereno do rosto de Mônica. As sardas de Mônica traziam o brilho de mil e uma noites de Sherazade, prometiam milhões de histórias que meus olhos, cansados de histórias banais, desejavam ouvir e se encantar.
Talvez eu tivesse mergulhado demais nas sardas de Mônica para perceber que a loira me perguntara algo e esperava a minha resposta. Notei que a loira mudara de posição, já estava ao meu lado, bem próxima de mim – quando foi que ela se aproximara tanto? Na dúvida sobre o conteúdo do questionamento que ela me fez e envergonhado demais para confessar-lhe minha completa falta de atenção, acenei-lhe um sim. Depois o tempo passou atropelado: percebi-me aos beijos com a loira, enquanto Mônica, embaraçada (ou tranquila? Não sei, ah, eu não sei!), despedia-se de nós, levando consigo aquelas sardas, cheias de histórias que jamais ouvirei. A partida das sardas de Mônica foi o início de uma noite pornográfica, mas sem estrelas.
Hoje: acordo em um hotel, abraçado à loira sem nome. Levantamo-nos ressaqueados e, depois de uma despedida de promessas vazias e beijos evasivos de até logo, saímos e seguimos, cada um, um rumo oposto ao do outro. Tenho a impressão de que jamais nos veremos novamente, assim como não verei novamente as sardas de Mônica. Estranheza canalha: por que o jardim invisível e inacessível é mais verde e presente se a gente não o vê nem o sente? Não sei, mais um milhão de vezes de não sei. Talvez por isso um verso da canção de Legião Urbana não me sai da cabeça: a primeira vez é sempre a última chance.
Sussurro a canção enquanto caminho e é nessa hora que esbarro com o Zé. Ele para na minha frente, meio encabulado, nitidamente enlouquecido e surpreendentemente surpreso por me flagrar sussurrando comigo mesmo. É como se me reconhecesse, após o fim de um grande pesadelo. Depois acena negativamente com a cabeça e bate nela como se espantasse algum mau pensamento, como se dissesse: “Não, amigo Artur, não flerte com a mesma loucura que me enlouqueceu”. Digressão, outra digressão: essa última comparação talvez seja mais uma ilusão, mais um verde no jardim invisível e inacessível.
Depois da autoflagelação, Zé parte, novamente conversando em dialetos desconhecidos com seus amigos invisíveis. Lá se vai meu amigo Zé, tão impossível a mim quanto as sardas de Mônica.
Direciono meu corpo, minhas constatações balbuciantes e meu insistente ar de derrota ao mesmo bar de outros outroras. Pego um chope no balcão e sento-me a mesa. Ao lado dela, a mesma cadeira vazia me encara. Em algum espaço entre o balcão e eu, a ausência das sardas de Mônica. Sobre a mesa, a antiga pergunta que fiz a Zé me sorri. Mas não retribuo o sorriso dela. Mesmo depois de tanto tempo, permaneço o mesmo: continuo fingindo que não a vejo.

"Bebendo Absinto (A Musa Verde)", de Victor Oliva






Um comentário:

  1. Adorei ler esse conto do nao conto, talvez, um ponto de encontro. Saudacoes poeticas, meu amigo !

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