domingo, 15 de novembro de 2020

Crônicas crônicas eleitorais: O voto inútil

É a segunda eleição consecutiva que vou para votar com a alma já derrotada. Sei – infelizmente sei e considero que seria mais infelizmente não saber (é a única forma de conforto para me manter menos doente e ainda consciente) – quais são os jogos tenebrosos recentes de poder (se já não eram, em minhas fases de maior inocência num cenário em que crises não flertavam tanto com o animalesco instinto homicida-suicida humano) e sinto úlceras ancestrais só de ver os jogadores que podem ser escalados na perpetuação da kamikaze partida.
Esqueça seus sonhos, encare a realidade e escolha entre o pior que tá, o pior que tá não fica e o pior que pode piorar – eis suas principais opções. Outras alternativas? Talvez um novo tão velho quanto aquele aristocrata que alimenta as traças da tradicional história confundida com a História maiúscula, das grandes minorias, do verdadeiro povo, que não têm noção que foram, são e sempre deveriam ser os protagonistas de sua História, mas que, por instinto primitivo de sobrevivência devido à quase total miséria média-classicamente e milionária-predatoriamente imposta, preferem se aliar aos seus usurpadores num contrato de migalhas temporárias e perdas permanentes. Ou talvez um novo com velhos sonhos, quase sem chances, que busca representar as grandes minorias, o verdadeiro povo, sem conhecê-los, sem perceber que elas não se veem tão representadas quanto ele as conclama estarem. Ah, e o pior: o novo e o velho abraçados ao mesmo monstro, que prega dogmas e fascismos antiquíssimos, tão antigos e peçonhentos que as grandes minorias, o verdadeiro povo, com a memória empobrecida pela desilusão das inglórias imediatas fortificada pelos venenos esquecidos, os confundem com elixires divinos e se iludem com remédios que são, na verdade, placebos, como se doenças erradicadas no passado fossem curas para doenças modernas, quando doenças comprovadas, parasitas seculares e venenos mortais continuam sendo, em qualquer tempo, doenças comprovadas, parasitas seculares e venenos mortais. 
Sim, confesso, ando há algum tempo cético e cada vez mais perturbado com as partidas políticas. Antes, ao menos, se parecia mentir por um projeto político; hoje, apenas se mente – não há mais nenhuma necessidade de aparentar ter um projeto. Há carreiras políticas como carreiras de cocaína – todos querem enfiar o nariz na droga do poder. Tem-se planos sem planejamentos; tem-se intenção sem objetivos; tem-se propostas sem contrapropostas. Ninguém projeta e os desperdícios, despreparos e a falta de empatia e respeito às normas básicas mínimas de cuidados consigo e com o próximo durante esse período de pandemia são uma evidência dos descaminhos da involução humana. Minha utópica anarquia chora, pois não se pode sonhar mais sonhar que cada um pode cuida de si em prol do coletivo, porque este é um sonho humano e somos cada vez menos humanos. E, em tempos de eleição, somos menos humanos votando em busca do menos desumano – o que não muda o fato de estarmos escolhendo jogadores que trazem a desumanidade em algum lugar para uma partida destrutiva que durará mais quatro anos de proliferação da desumanização que, de tanto sagrar-se vitoriosa, seja qual for o time desumano que ganhar, enraíza-se e perpetua a nossa gradativa e cada vez mais íntima assimilação da desumanização – sim, tenho me elegido menos gente a cada eleição. 
Saio da seção eleitoral com a alma derrotada. No caminho, vejo bocas escancaradas, com ou sem máscaras. O Homo Sapiens se tornou o homem que finge que não sabe a involuir ao homem que não sabe até chegar ao Des Homo, Des Gente, todos Obrigados e Des Nadas. “Quem será o desumano da vez?”, algum eleitor fantasma, que já sabe a resposta, me pergunta só para me aterrorizar. “Será um desumano, como eu ou você, ou mais desumano, como futuramente vamos ser.”, ameaço responder, mas calo-me outra vez; às vezes omitir é uma humilhação mais confortável, dói menos que a insuportável revelação. Mas ainda assim é derrota, ainda assim é mais uma humilhação. Ainda assim dói demais. 
Retorno para casa e minha alma derrotada descansa sem descanso em mais um domingo morno meio morto.

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