Imagem da instalação "Rain Room", montada no Barbican Centro de Londres |
Faz
um bom tempo que não venho aqui atualizar as postagens do blog. Os motivos
desta vez são diversos e, ao mesmo tempo, muito parecidos com os de outras
vezes: 1) motivo mais novo: estou numa fase de nova rotina de trabalho, com
novos desafios e aprendizados – por sinal e graças a Deus, bastante ativa, fato
que me deixa bastante atarefado; 2) motivos que são problemas que vão além de
quaisquer previsões: internet que não pega – sim, a ‘bendita’ Oi na casa de meu irmão, cujo wi fi capturo nos
fins de semana em Valença/RJ, ironicamente chamada de “Velox” e “Total”, designações
completamente opostas a um serviço de m... que a operadora ‘disponibiliza’
(estávamos sem internet desde 27 de janeiro e, depois de mil ligações e uma
coleção de protocolos, nada se resolveu) -, problemas de saúde com familiares, etc; 3)
motivos de sempre: eu mesmo, inimigo meu – às vezes, procrastino um pouco
depois de momentos febris de preparação de textos literários e/ou material de
aula, rola aquela preguiça, às vezes desânimo, recolhimento existencial que se
contrapõe ao virtual, etc. Bem, seja como for, estou de volta e, como sempre,
com novas e velhas novidades para os amigos leitores!
Para
(re)começarmos (afinal, o blog é assim como o diário que é assim como relatar
experiências diárias que é assim como viver e reviver cada momento que é o
essencial do ser: seguir em frente, sempre trazendo as experiências que ficaram
pra trás, num eterno “restart”, passando por longos ciclos de começar e
recomeçar os dias o tempo todo), bem, pra (re)começarmos, trago um brinde aos
leitores fiéis: um conto inédito meu chamado “Rosana”, previsto para meu
próximo livro, cujo nome provisório é “O estranho que me vejo”. Apesar de ser
uma obra fictícia e curta, se encaixando melhor com o gênero textual conto, sua
estrutura e inspiração flertam com a crônica pela proximidade de fatos do
cotidiano e ter base em alguns acontecimentos reais (o que também aproxima o
texto do relato autobiográfico, mas cuidado: é um conto, ou seja, o narrador
pode parecer estar numa confissão honesta e/ou o autor está apenas
desenvolvendo uma nova forma sincera de mentir, iludir o amigo leitor – por exemplo,
o protagonista de outro conto meu “A última poeta”, do livro “Diários de
Solidão” [2010], já postado aqui no blog, vive sendo confundido comigo, o
autor, fato que me dá ares de extrema satisfação [como afirma {acho que a frase
é de} Caio Fernando Abreu, todo escritor é um cretino, logo saber que sua farsa
convenceu outrem só dá alegria a nós, escritores ).
Bem,
seja como for, o conto “Rosana” tem tudo a ver com essas noites meio chuvosas.
Espero que gostem, amigos leitores! Boa leitura e Arte Sempre!
Rosana
(Ou Dançando na chuva com você)
Havia uma garoa assim caindo naquela
tarde distante... Éramos dois adolescentes saindo mais cedo da escola (o
professor faltara, ah! surto de hepatite abençoada!). Corríamos na chuva, em
direção das nossas casas. Eu, nem delinquente, nem nerd, eu apenas eu. Você,
nem a mais linda, nem a mais genial, você apenas você. Dois jovens tão jovens;
você um pouco menos jovem que eu. Nem amigos íntimos, nem desconhecidos ligados
pelo acaso – apenas colegas de escola, estudantes na mesma turma, quase
vizinhos, saindo mais cedo da aula numa tarde chuvosa.
Em algum momento, a chuva parou.
Possivelmente o céu ainda nublado estava satisfeito com sua traquinagem:
estávamos encharcados e cansados de correr. Então você olhou para o chão e
observou as poças que a chuva deixou no asfalto esburacado. Eu fiquei ali
acompanhando seu movimento e seu silêncio, tentando imaginar o que você
planejava... Então você esboçou um sorriso inicialmente enigmático, chutou uma
das poças e atirou lama contra mim. Enigma desvendado: seu sorriso era pueril,
de adolescente voltou a ser criança. Naquele momento, a menina mais linda, como
eu jamais a vira antes.
Revidei a brincadeira, chutei outra poça
mais próxima de mim, atirei lama em sua direção e você fugiu, pediu para eu
parar. Sapeca, você queria sempre me atingir sem jamais ser atingida. Outro
sorriso pueril de rendição, cada vez mais a menina mais linda de meu pequeno
universo.
Sorrindo de volta pra você, me distraí,
esqueci minha adolescência, minhas invenções de problemas, meu crescimento
inconstante. A brincadeira mantinha um ritmo pueril, até que reparei o quanto
estávamos molhados e que a alvura e o pano barato de nossas camisas de escola acusavam
transparências, quando o uniforme ficava umedecido, como naquela hora... Foi nesse momento que reparei pela primeira e
única vez nos seus seios, o desenho perfeito deles pintado pelas gotas de chuva
sobre sua camisa umedecida.
Não consegui disfarçar o olhar
imprudente e safado, de novo um adolescente com hormônios descontrolados, Adão
revisitando o corpo de Eva, despido do olhar sagrado. E você, não mais menina,
parou de sorrir e cobriu a quase nudez com o caderno molhado, Eva ofendida pela
profanação do olhar intruso de Adão. Seu movimento lento em defesa do pudor
contrastava com a velocidade dos acontecimentos anteriores. Baixei os olhos, de
novo um adolescente bobo, o pecador inocente mais envergonhado de todos os
universos, Adão condenado à expulsão do Paraíso.
Ficamos calados por intermináveis
segundos, as nuvens negras sem chuva pareciam mais pesadas que outrora, então
você disse que era melhor seguirmos os nossos caminhos. A frase ganhou
terríveis duplos sentidos. Subimos a escadaria para o nosso bairro com passos
pesados, apenas os degraus ainda molhados testemunhavam a estranha tristeza
dessa nossa via crúcis. Não havia mais leveza em nós; a inocência falecida
repousava um sono intranquilo, entremeado de pesadelos, enquanto ultrapassávamos
os degraus, buscando um ar, tantas vezes farto, mas, naquele momento, tão
rarefeito...
Falamos pouco, quase nada, até cada um
seguir seu caminho e alcançar a sua respectiva morada. Na despedida, um adeus
sem graça. Nunca mais faríamos companhia um para o outro no trajeto de casa pra
escola, da escola pra casa... Teríamos breves contatos superficiais na sala de
aula, algumas trocas de palavras necessárias para quem convive na mesma prisão
social. Nem Éden, nem maçã – de Adão herdei apenas o sonho de um paraíso
perdido inatingível e muita vergonha. E você seguiu seu rumo indiferente – Eva
de uma costela que não perdi, Eva de outro Adão.
O ano letivo acabou e nos formamos sem
muita badalação. Algum tempo depois, você se mudou e eu também mudei. O tempo
continuou passando, nos mudando e muito pouco nos esbarramos.
Hoje (tanto tempo depois!), a chuva
antiga me reencontrou: numa noite de tempestade, enquanto eu bebia num bar
próximo a minha casa, um amigo se aproximou, puxou assunto e, no meio da
conversa, me contou que você se matou. Ele nem sabia que eu a conhecia; como é
comum em cidades pequenas, meu amigo apenas me contava as parcas e trágicas
novidades desse cantinho meio escondido de tudo, até de Deus. Seu nome,
associado a uma morte que você própria se causou, ecoou em minha cabeça cheia
de lembranças adormecidas (ah, de novo o Éden perdido e inatingível, de novo eu
Adão lamentando uma parte perdida de mim, uma parte perdida que jamais perdi!).
Lembrei-me de você, Rosana, ah, seu nome
calado em meus lábios envergonhados por tantos anos! Meu amigo percebeu que
fiquei meio distante após a notícia de sua morte, Rosana, então tentou mudar de
assunto, reclamar do mau tempo e da falta de entrosamento do time para o qual
torcemos, ou melhor, sofremos. Mas eu não consegui acompanhar mais os
pensamentos de meu amigo, Rosana, eu não consegui mais esquecer você. Assim
como eu, a chuva insistia em tocar sua melancólica sinfonia do lado de fora do
bar.
Sem mais assunto ou sorrisos, me despedi
de meu amigo, saí do bar e caminhei na chuva. Vi várias poças d’água que se
formavam com a tempestade... Tanto tempo passado, Rosana, e ninguém conseguiu
consertar direito os buracos históricos das calçadas e do asfalto de nosso
bairro. Então eles permanecem aqui, feito aquele antigo eu, feito eu agora,
feito você outrora, formando poças e mais poças. Ameacei chutar uma delas, mas
hesitei. Medo de chutar alguma gota do passado, medo de escorregar, medo de me
machucar outra vez, medo, simplesmente medo, triste e sem explicação.
Por
isso agora danço entre as poças enquanto falo com uma impossível você neste
momento – sou Adão ridículo falando sozinho e evitando os vazios do Paraíso
Perdido. E essa dança é tão delirante, Rosana, que, por mais que lhe conte,
nunca saberei explicar se as gotas da chuva que molham meu rosto nesta hora são
puras ou se estão misturadas com alguma lágrima que deixo cair... E, por mais
que eu dance, lhe conte e evite explicar, Rosana, sempre caio em alguma das
diversas poças, não consigo mais evitar...
Imagem da instalação "Rain Room", montada no Barbican Centro de Londres |
Nenhum comentário:
Postar um comentário