A vida de professor não é (nunca foi) fácil, amigos leitores,
principalmente nos dias atuais. Ora há a insegurança financeira constante
devido aos sucessivos atrasos de salário e cortes de direitos, ora a
preocupação com o crescimento da constante ameaça conservadora e retrógrada do
movimento Escola sem Partido, ora a decepção e tristeza com a apatia, mau
desempenho em provas e falta de interesse dos alunos – é, às vezes, dá vontade
de largar tudo e ir embora pra Pasárgada ou qualquer outro canto lírico utópico.
Mas essa vontade sempre acaba passando
(após algumas dores de cabeça, alguns dias sem dormir direito, etc rs) e os
artistalunos sempre, em algum momento, mesmo quando já aprontaram bastante em
momentos anteriores, salvam o seu dia e renovam o desejo de seguir em frente. A
arte sempre salva, amigos leitores, e nos surpreende quando menos esperamos.
Uma prova disto está na postagem de hoje: relembro um projeto realizado no
primeiro bimestre com os nonos anos da Escola Municipal Alcino Francisco da
Silva, na região rural de Teresópolis/RJ, onde leciono (ou, em vários momentos,
me esforço para conseguir lecionar) Português.
Em meio ao caos de
acontecimentos-problemas já citados no início dessa postagem, aproveitando a
temática feminina, impulsionada pelo Dia da Mulher, decidi, com o apoio da
equipe diretiva e da maioria do grupo de professores dos nonos anos, realizar
um trabalho interdisciplinar (já realizamos há tempos as aulas
interdisciplinares e uma prova interdisciplinar por bimestre, logo tal trabalho
seria mais um acréscimo que uma completa novidade) sobre fragmentos do livro
(do gênero textual diário) “Minha vida de menina”, da escritora brasileira
Helena Morley (pseudônimo da fodástica escritora Alice Dayrell Caldeira Brant, e a versão cinematográfica da obra, intitulada
“Vida de menina”, filme de 2003, dirigido por Helena Solberg e estrelado por Ludmila Dayer, Daniela Escobar, Dalton Vigh,
entre outros grandes atores nacionais. O
livro e o filme se passam no Brasil do período pouco após a abolição da
escravatura e a proclamação da república. Tanto no filme quanto no livro, Alice/Helena
Morley, protagonista pobre, magra, agitada, nem um pouco bem comportada, desengonçada
e sardenta, começa a escrever seu diário, debochando e desmascarando as
pretensas virtudes alheias de Diamantina, cidade onde ela vive, revelando seu universo feminino e um país
tão adolescente quanto a menina. Durante todo livro e filme, Helena Morley procura
com sofreguidão não perder uma infantil alegria de viver e reinventa o o mundo
à sua maneira, tornando-se, como escritora, o diamante mais raro de Diamantina.
Na proposta de trabalho interdisciplinar, além de questões levantadas por
várias matérias (o preconceito velado após a abolição da escravatura e a
hipocrisia social da Velha República, em História e Geografia, o uso de vários
tipos de energia nas atividades cotidianas no Brasil antigo, em Ciências, a
importância dos primeiros socorros [se Helena Morley conhecesse os métodos de
cuidados emergenciais], em Educação Física, a riqueza estilística da obra, em
Português e Literatura), pedi uma produção textual na qual os escritores-alunos
teriam que criar uma página de diário escrita por um dos personagens (que não
fosse a própria Alice/Helena Morley) do livro “Minha vida de menina”,
recontando um episódio dos fragmentos lidos do livro ou vistos no filme. E os
escritores-alunos ousaram e brilharam na produção textual. Abaixo posto algumas
dessas fodásticas páginas de diários, escritas com maestria, pelos
escritores-alunos dos nonos anos da Escola Municipal Alcino Francisco da Silva.
A vida de professor não é fácil, mas existem momentos gloriosos, como
esse de ter o privilégio de ler textos incríveis escritos com amadurecimento, habilidade
e genialidade pelos talentosos e jovens escritores-alunos, que salvam a nossa
alma e renovam a vontade de continuar. Boa leitura e Arte Sempre, amigos
leitores!
Diário 1
Diamantina, algum dia de 1893
Fomos Helena e eu
lavar roupa na cascata. Helena e a prima dela ficaram brincando de corrida de
barco feito de folha. A avó de Helena tacou uma pedra no barco de Naná e Helena
ganhou o primeiro lugar. Naná ficou com raiva, fez um monte de bolinhos de lama
e ofereceu a Helena. Percebendo a maldade de Naná, Helena ficou com raiva e
atirou os bolinhos de lama em Naná, que logo chamou a mãe dela.
A mãe de Naná
ficou com raiva de Helena e botou a sobrinha de castigo. Helena tentou
conversar com o pai dela e se livrar do castigo. Mas nada se pôde fazer: Helena
ficou sem almoço, mas levei uma fruta para ela não ficar com fome. Depois de
tantas confusões, fomos embora para casa.
Arinda (amiga afrodescendente de Helena)
(David, Gilvan, Brenno, Lucas, Matheus - 9.º B)
Diário 2
Diamantina, algum dia de 1893
Hoje minha prima
Helena sujou o meu vestido novinho; primeira vez que eu o usava. Me jogou
bolinhos de lama que eu mesma fiz. Fiquei com tanto ódio que chamei mamãe. Ela
deu fortes beliscões em Helena, fiquei muito feliz por isso. Helena, além de
chorar, foi obrigada a ficar sem almoço. Mas vovó, como sempre, abraçou Helena
e ficou adulando-a. Às vezes sinto raiva de vovó.
Naná (prima de Helena)
(Thais, Thaynara, Hevelyn e Angélica - 9.º B)
Diário 3
Diamantina, algum dia de 1893
Não sei por que
ainda existe essa discriminação conosco, os negros.
Ainda ontem fui
carregar a lenha e um amigo branco veio me ajudar. Quando ele encostou na
lenha, a mãe dele veio correndo e disse: “Tire as mãos da lenha! Isso é serviço
para os negros!”
Não entendo. Nós,
negros, não somos algum tipo de animal escravo, somos seres humanos. Mas, como
eu já me acostumei, não me preocupo muito.
Espero o dia em
que todos nós, humanos, tenhamos os mesmos direitos, independente de raça, cor,
sexo, etc. Queria que nós vivêssemos em harmonia.
Mas esse dia vai
chegar sim. Vou pedir a Papai do Céu que isso aconteça e, se Ele quiser, vai
acontecer.
Arinda (amiga afrodescendente de Helena)
(Carlos Eduardo Freitas – 9.º C)
Diário 4
Quarta-feira de Trevas, 29 de março de 1893
Hoje várias
mulheres vieram se confessar para mim, o que é costume na Semana Santa. Dentre
elas, estava a Sra. Carlota. Eu logo comecei perguntando:
- Você fala mal da
vida alheia?
Ela respondeu:
- Muito, Senhor
Bispo.
- Perde missa aos
domingos?
- Muito, Senhor
Bispo.
- Deseja mal aos
outros?
- Muito.
- Você furta?
- Muito.
Então eu disse:
- Você está é
muito bêbada. Vá curar essa mona e volte.
Por sorte, só ela
estava nesse estado.
Bispo
(Isabela Correa, Tatiane, Alessandro, Carlos Daniel – 9.º A)
Diário 5
Terça-feira, 29 de agosto de 1893
Minha irmã e eu
nem parecemos filhas dos mesmos pais. Alice é respondona e impaciente. Eu já
sou sossegada.
Hoje ela me roubou
cinquenta mil réis que eu estava guardando para comprar um vestido. Ela me
pediu o dinheiro para fazer sua festa de aniversário, alegando que ia dividir
comigo a metade dos vinte presentes que ela iria ganhar. Após a festa, só me
deu uns biscoitos. Eu reclamei, aí ela me deu um sabonete e um par de meias.
Luisinha (irmã de Helena)
(Paulo Sérgio – 9.º C)
Diário 6
Quarta-feira, 29 de agosto de 1893
Querido diário,
Não sei escrever
tão bem porque ainda sou pequenina, como vovó diz, porém vou tentar. Hoje de
manhã minha irmã veio conversar comigo enquanto eu estava lá no galinheiro. Ela
veio toda boazinha, eu sabia que queria alguma coisa... dito e feito!
Depois de tanto
tempo economizando, Helena veio pedir dinheiro para fazer uma festa de
aniversário para ela. Na hora pensei: Não!!! Mas depois ela disse que os
presentes que ganhasse iria dividir comigo, aí resolvi concordar. Helena fez a
festa e ganhou 20 presentes. Sabe o que ela me deu? 3 presentes, os piores. Ela
acha que não percebi porque sou pequena, mas percebi sim e que ela fique
sabendo: vai ter volta!
Luisinha (irmã de Helena)
(Larissa, Eric, Samira, Tamara e Nicoly - 9.° B)
Diário 7
Diamantina, algum dia de 1893
Querido diário,
Todos os meus
vizinhos acham que eu sou ladrona de galinha. Pois é, eles estão certos. Já
roubei várias galinhas dos meus vizinhos, inclusive a da Helena.
Hoje de tarde, ela
saiu de sua casa igual uma louca, ficou perguntando sobre sua galinha carijó.
Helena colocou a culpa em mim, me xingou e até me ameaçou, falando coisas como
“quando eu encontrar esse ladrão de galinhas, vou dar uma tunga nele” e olhou
para mim enquanto falava.
Uns dias depois, a
mãe de Helena, Carolina, pegou gripe das feias. Fiquei com pena e fiz uma canja
pra ela com a mesma galinha que roubei de sua filha.
Sei que o que eu
fiz foi errado e acho que Helena desconfiou disso, mas ela não disse nada.
Depois disso, ela ficou bem comigo.
Siá Ritinha (vizinha de Helena)
(Yasmin, Thais, Helen, Leticia e Laura – 9.º C)
Diário 8
Diamantina, algum dia de 1893
Querido diário,
Hoje o pai da
Helena falou que não vamos para o mesmo céu. Eu não acho que isso seja verdade,
penso que céu só tem um e que Deus é um só.
Aqui nesse lugar
eles nos tratam diferente porque somos negros e pobres.
Eu não vejo tanta
diferença assim, porque temos a mesma capacidade de pensar e sentir, somos
seres humanos como eles ou somos até mais humanos que eles. Tenho certeza que
lá no céu Deus não vê tantas diferenças como eles.
Todos dizem que as
doenças e a morte são coisas terríveis. Eu não acho, penso que as doenças e a
morte são ideias que Deus teve para nos igualar, para todos verem que não somos
diferentes. Eles morrem e ficam doentes como nós. Mas, bom, acho melhor deixar
isso que penso ficar entre nós porque pode me trazer problemas. Vai ser nosso
segredo.
Arinda (amiga afrodescendente de Helena)
(Shayane Domingos - 9.º A)
Diário 9
Diamantina, algum dia de 1894
Querido diário,
Hoje venho lhe
falar como estou triste com minha filha Helena. Ela vendeu meu broche que seria
seu de herança só para comprar um uniforme novo, sendo que nesta casa temos
coisas mais urgentes para comprar. Eu sei que um dia o broche ia ser dela, mas,
quando ela o vendeu, meu coração entristeceu.
O que também me
deixa triste é que agora ela dá mais valor à avó dela que dá tudo pra Helena.
Isso me humilha porque eu não posso dar
nada para ela. Só posso lhe dar o amor de mãe e ela não me dá mais valor por
isso. Este dia de hoje pra mim só foi dor.
Carolina (mãe de Helena)
(Matheus Quintieri, Talles, Carlos Fernando, David Pires e Robson - 9.º
A)
Diário 10
Diamantina, algum dia de 1894
Hoje minha filha
Helena veio me contar que vendeu o broche da sua mãe. Fiquei um pouco nervoso,
mas levei em conta que eu tinha pego o brilhante do mesmo. Então ela me abriu
os olhos que ali naquela lavra não ia dar mais nada, que era perda de tempo. Eu
ficava muito tempo longe da minha família e quase não vi meus filhos crescerem.
Alexandre (pai de Helena)
(Charles, Lorran, Victor, Gustavo - 9.º A)
Diário 11
Diamantina, algum dia de 1894
Olá, papel
confidente,
Hoje tive uma
experiência extraordinária. Helena, minha prima, me perguntou se eu queria
cometer um “pecado mortal”. Por curiosidade, perguntei qual deles. Ela
respondeu, com um sorriso malicioso no rosto: “Não furtarás”. Fomos até o
Empório do Seu Antonio e, enquanto Helena o distraía, fui sorrateiramente até a
vidraça onde estava o desejado caderno do interesse dela. Olhei para eles e vi
que o senhor estava distraído o suficiente para não me ver cometendo o delito,
então peguei o objeto e o pus entre meu paletó. Depois disso, voltei até a
bancada ao lado da minha prima e coloquei minhas mãos sobre o seu ombro. Ela
entendeu o sinal. Despedimos do senhor, saímos e fomos em direção à praça.
Quando nos olhamos
nos olhos, um sorriso surgiu em nossos lábios. Partimos de lá correndo feito
loucos. Depois de uma boa distância, Helena se jogou nos degraus de uma pequena
escadaria. Estávamos ofegantes pela correria. Sentei-me junto dela e entreguei
o caderno, que agora lhe pertencia. Um sorriso mais brilhante tomou conta de
sua face; ela estava feliz. Eu não conseguia me controlar, tomei os lábios dela
em um beijo casto, mas cheio de sentimentos, pelo menos de minha parte. Assim
encerramos a aventura e voltamos para nossas moradas.
Leontino (primo e futuro marido de Helena)
(Angélica, Livia, Lidiane e Flaviane – 9.º A)
Diário 12
Diamantina, algum dia de 1894
Hoje eu não estava
me sentindo muito bem. Acho que é por causa da idade. A Helena ficou sabendo do
meu estado e veio me visitar.
Comecei a passar
mal, ela correu e chamou o médico. Ele me consultou e me passou alguns
remédios.
Quando eu era mais
jovem, meu marido havia me dado um broche, o qual eu guardei e deixei para
minha filha Carolina que um dia o daria de herança para Helena. Mas o marido de
Carolina e minha neta Helena roubaram cada um uma parte do broche e o venderam.
Mas eu o recuperei, sem que eles soubessem.
Naquele momento,
com Helena cuidando de mim, percebi que este era o dia para entregar o presente
para ela. Então entreguei o broche, ela
me agradeceu e leu um dos seus castelos para mim.
Teodora (vó de Helena)
(Laysa, Christian,
Cintielen e Karina – 9.º A)
Diário 13
Diamantina, algum dia de 1894
Hoje de manhã
acordei em Diamantina e Helena não estava na cama. Fui para o quarto de minha
mãe e percebi que a sua cama já estava arrumada. Possivelmente mamãe já se levantara há algum
tempo. Lá Helena também não estava. Fui para a cozinha. Logo no corredor senti
o cheirinho de café fresquinho. Assim que entrei na cozinha percebi que Helena
também não estava lá. Perguntei para minha mãe e ela disse que Helena estava na
casa da vovó.
Tomei café e fui pra lá. Assim que cheguei na varanda, avistei Helena
deitada na rede, olhando para o céu, com seu livro ao lado. Deitei do lado dela
e começamos a conversar. Ela me contou que vovó tinha lhe devolvido o broche
que minha própria irmã havia vendido. Percebi que, mesmo assim, Helena estava
triste. Será que é por que não achou mais sua galinha? Comecei a conversar com
ela, lembrando os momentos que tivemos juntas. Helena olhou dentro dos meus
olhos, respirou fundo e me abraçou com o sorriso de canto a canto.
Levantamo-nos da rede e percebemos que as horas já tinham passado. Enfim,
voltamos para casa juntas.
Luisinha (irmã de Helena)
(Andressa Sabino, Karolayne, Carlos Emanuel e Josias – 9.º A)
Diário 14
Diamantina, algum dia de 1894
Helena é minha
neta preferida, tudo que eu tenho compartilho com ela e, de alguma forma, tento
ajudar em qualquer coisa.
Ela adora me fazer
companhia e, apesar de aprontar um montão de coisas, no fundo, ela é uma boa
pessoa. Faz de tudo para ganhar vantagem e até aprontou com sua irmã para isso.
Quando comecei a
ficar doente, senti que não me resta muito tempo de vida e que Helena ficou
muito triste e preocupada. Mesmo assim, ela tenta permanecer forte e conta
histórias para mim. Dei um broche para ela e tenho certeza de que, quando eu
partir, isso vai ser uma forma de Helena se lembrar de mim e seguir em frente.
Espero que ela
seja uma menina com um futuro brilhante, carinhosa, em busca de coisas boas e
que nunca se esqueça de quem ela realmente é.
Teodora (vó de Helena)
(Livia de Jesus, Erica Charles, Carlos Eduardo Xavier – 9.º C)