Segundo Rainer Sousa, em um artigo sobre o Holocausto, “nossa
relação com o passado se dá de diferentes formas e, a partir da interpretação
das experiências vividas, o homem passa a ditar determinadas ações de sua vida
cotidiana. Geralmente, as experiências ruins são respondidas com ações e idéias
que evitam a repetição de um mesmo infortúnio.” Baseado nisso, confesso, com
muita vergonha, que já fui homofóbico durante grande parte de minha adolescência;
eu era um daqueles adolescentes que não suportava passar ao lado de um
homossexual sem torcer o nariz ou transferir um olhar de repulsa ao próximo, cheguei
a presenciar cenas de extrema violência contra gays e nada fiz para deter os
agressores, ou seja, em resumo, na questão tolerância e compreensão do próximo,
eu fui um grande babaca. Só a partir de meus quinze/dezesseis anos, suavizei
minha postura, à medida que lia livros de autores maravilhosos, declaradamente
homossexuais, e ouvia as fodásticas canções de Cazuza, Renato Russo e Freddie Mercury.
E a cada momento de amadurecimento da minha poesia, a vida foi me ensinando o
quanto eu deveria ter vergonha de minhas atitudes preconceituosas: meu irmão é
declaradamente gay e conheci todo o mal estar da homofobia ao, nas minhas idas
e voltas, vê-lo diversas vezes chegar gravemente ferido em casa, alguns dos
melhores artistas com quem dividi (e divido) o palco em performances artísticas
são gays (por sinal, minha memória não registra nenhuma decepção com a maioria
deles; sempre quando precisei de apoio artísticos, eles eram a maioria da lista
dos que jamais me deixaram solitário na luta diária por uma arte mais livre; já
os ditos ‘machões fodões’, nossa, são tantos os covardes que já me
decepcionaram e me abandonaram perdido que até perdi as contas).
Queria que o Brasil também revisse a sua história e
percebesse o quanto sua postura homofóbica é nociva ao desenvolvimento de nossa
nação. Em 2013, uma pesquisa registrou que a cada 28 horas foi assassinado um
homossexual. O registro de gays, lésbicas e travestis assassinados cresceu
quase 15% no país nos últimos quatro anos. Com 312 mortes, o Brasil lidera
ranking mundial de violência contra homossexuais. E isso ainda é incentivado
pelo Estado, através de políticos eleitos e reeleitos com uma soma assustadores
de votos, como é o caso de deputados federais como Jair Bolsonaro (PP-RJ),
Marco Feliciano (PSC-SP) e integrantes da chamada Banca Evangélica do Congresso.
Muitos candidatos a presidente ou a outro cargo do nosso país mantêm a
escandalosa “homofobia institucional” como um tabu, como um assunto a ser
evitado sob ameaça de perda de votos. O Brasil não aprendeu, não quer aprender,
mantendo-se assim também no posto de nação com maior índice de analfabetos
funcionais do mundo, pois lemos todas as letras de nossa história, temos acesso
a toda essa trágica informação, mas preferimos não entender os significados,
nos mantemos na incômoda posição de acomodados com a ignorância, seguindo o
pensamento besta do “pior do que está não pode ficar”.
Ao meu passado vergonhoso, devo sempre a “exorcização” de
todos os pecados que cometi, principalmente o de ter passado tanto tempo de
minha existência de uma forma intolerante, completamente babaca. Quando a
cantora, minha artistamiga Carina Sandré, mais uma vez me convidou para
participar da nova edição em tributo ao Queen, que acontecerá amanhã, dia
20/09, às 21 h, no Teatro Gacemss II, em Volta Redonda/RJ, e
me solicitou mais uma subversão poética, desta vez, da canção “Who wants to
live forever”(nas edições anteirores, fiz uma para “Bohemian Rahpsody” e outra
para “Under Pressure”, ambas postadas aqui no blog), encontrei mais uma
possibilidade de expurgar liricamente toda minha tolice do passado. Para isso, subverti
o conteúdo a letra da canção, respeitando, como sempre, mais o ritmo que a canção
em inglês pode gerar numa leitura em português dela, mas, dessa vez, mantive
algumas mensagens implícitas da composição original. Na minha subversão poética,
o eu lírico homossexual dialoga com seu amado e mostra suas angústias e
esperanças contra um mundo que constantemente agride e rejeita a preferência
sexual do casal. Tem diversos versos que relembram episódios tristes de nossa
história contemporânea: a famigerada proposta de ‘cura gay’, a intolerância de
diversos grupos religiosos e a violência crescente contra os homossexuais. Mas,
como a melodia de “Who wants to live forever” pede, tentei dar aos versos
finais voz a uma melancólica porém resistente esperança de meu eu lírico
homossexual. Não sei se dei conta do recado, mas aí vai para a apreciação e crítica
dos amigos leitores. Mais uma vez, agradeço a artistamiga Carina Sandré pelo
belo e rico desafio poético que ela mais uma vez me ofereceu; se hoje tenho
algum destaque no meio artístico de Volta Redonda/RJ, devo à confiança e à ousadia
dessa cantora, a mais líricas das divas brasileiras, em juntar poesia e música
num espetáculo intenso e brilhante que só ela sabe organizar e fazer.
Quem quiser conferir a declamação ao vivo e se extasiar com
o mais-que-fodástico show de Carina Sandré, não esqueça: o evento acontecerá amanhã,
dia 20/09, às 21 h, no Teatro Gacemss II, em Volta Redonda/RJ. O show
deve continuar, sempre lírico, evitando os infortúnios de nossos piores
passados. Abraços, Arte Sempre e Homofobia Nunca Mais!
Como a chama sobrevive se não ferve
Vivemos tempos ferozes
Onde ninguém olha por nós
E seria tão simples nos ver belos assim
Ao invés de quererem nos reformar...
Como a chama sobrevive se não ferve?
Como alguém sobrevive nessa neve?
Não deram chance alguma pra nós
Os sádicos decidem tudo por nós
E todos eles resolvem atirar suas torrentes
De maldade em nós.
Como a chama sobrevive se não ferve?
Como a gente sobrevive se nos ferem?
Como? Se nos destinam as piores
preces?
Como? Se todos querem nos matar?
Oh, troque o sermão triste por essa canção livre
E toque minha dor com seus lábios felizes
E manteremos tudo aquilo que nos ferve
E sobreviveremos a toda e qualquer neve
Toda e qualquer neve vai derreter!
E a chama ainda sobrevive mesmo contra a neve!
E a gente sobrevive mesmo quando não querem!
Toda e qualquer neve vai derreter!
E a gente vai sempre sobreviver…