Fim nublado do último final de semana do último dia de abril. Costumeiramente, os últimos fins de semana de fins de mês são períodos tradicionalmente melancólicos de encerramentos de ciclos (um mês que se vai, o salário que se esgota, o bolso, inutilizado, ansioso pelo quinto dia útil, um jargão ‘como este ano está passando rápido’, repetido entre os compadres e as comadres), ao mesmo tempo, que a renovação, o novo mês pede passagem. Num outono sereno como o de 2022, a sensação de melancolia entre novos fins e velhos recomeços se expande, enquanto o desejo de dias melhores (ah, o jargão ‘esse mês eu resolvo todas as pendências’ ressurge das cinzas de fracassos dos meses anteriores) e a sensação de iminência de uma nova garoa de pessimismo (ah, ‘tenho de medo de dizer que vai piorar, pois, atualmente, sempre piora, é outro jargão influenciado pelos meses de trevas anteriores) se beijam num tenso e, ao mesmo tempo, delicioso paradoxo. Um sereno, quase chuva, um mês que quase chega, um quase meio ano, quases “Quase” como a poética cheia de melancólicos vazios de Mário de Sá-Carneiro, escritor modernista português, autor do primoroso “Céu em fogo”, mestre artista que nasceu no fim do mês de abril (Lisboa, 19 de Maio de 1890) e escolheu o mês de maio para sua autodissolução (Paris, 26 de Abril de 1916).
O conto, de minha autoria, que trago hoje, inédito no blog, mas já publicado em coletânea do Grêmio Barramansense de Letras, traz essa boemia melancólica, repleta de cheios vazios, de quases (por sinal, o texto quase foi classificado em alguns certames literários; é um dos preferido de leitores queridos por mim, como a vizinha amiga Cláudia, chegando ao quase gosto popular, mas fadado ao sucesso do fracasso de ser sempre um quase algo) e traz como inspiração o clima sereno enigmático da poética do mestre Mário de Sá-Carneiro, um pouco do canastrão dramático personagem Arturo Bandini dos romances “Pergunte ao pó”, “Espere pela primavera, Bandini”, entre outros, de John Fante (coincidentemente, outro mestre escritor que idolatro, também nascido em abril [(Denver, Colorado, 8 de Abril de 1909] e falecido em maio [Los Angeles, Califórnia, 8 de Maio de 1983]), uma das cenas de dança em filme mais emblemáticas que já assisti em filmes (a cena do magnífico filme sul-coreano “Burning” [“Em Chamas”], de 2018, em que a personagem Hae-mi dança, transmitindo sensualidade, resquícios de boemia vazia, desejos de amor, vida contraditória, liberdade vã e tristeza e despertando nos que a veem (isso vaza além da cena] poderosos desejos de amor incondicional, perigosas fúrias serenas, posses, ciúmes e invejas – o filme é mais-que-fodástico, amigos, é impressionante; tanto que o meu conto surgiu alguns dias depois) e noites ligeiramente embriagadas no Bar Aqualume, do tio Jorge e da tia Rosana, em Valença/RJ, quando lá havia uma jukebox, que, volta e meia, aleatoriamente, alguém escolhia, para ouvir nela, a canção “Patience”, de Guns’n Roses. "Céu em fogo", "Em Chamas", pós melancólico-festivos de Bandini, fogos efêmeros no Aqualume, toda essa mistura de influências, regadas a mais algumas (over)doses de álcool, e uma ressaca melancólica existencial geraram o conto “In Patience”.
Para corroborar com os ares melancólicos deste fim nublado do último final de semana do último dia de abril, deixo para os amigos leitores o conto “In Patiente”. Leiam (e bebam-no) com ou sem moderação.
In Patience
Mais um conto embriagado de Carlos Brunno Silva Barbosa, escrito em guardanados de botequim (no Bar Aqualume, ou Bar do Tio Jorge, pra ser mais específico)
Será que existe algo mais deprimente do que ouvir “Patience” numa jukebox antiquada, posta no canto do botequim recém pintado, às 3 e pouca da madrugada, após a nona ou décima cerveja? Meus ouvidos embriagados perguntam-me isso, enquanto meus olhos assistem à dança solitária da moça (não tão moça) cambaleante (muito cambaleante) que selecionara no velho aparelho musical o dramático e pasteurizado hit da banda Guns n’Roses.
A moça, nem tão moça, dança sozinha com movimentos trôpegos, perigosamente intensos, e, mesmo assim, desajeitadamente suaves e harmônicos, como se reencontrasse e abraçasse um velho amigo em uma dessas festas de ex-colegas de faculdade. Sua dança parece acompanhar um par invisível e irresistível, um fantasma hipnótico e sensual. Os olhos dela estão fechados, como se o antigo sucesso a transportasse para outros tempos, talvez a um futuro alternativo, talvez a um passado que se mantém no presente, fora do prazo.
Meus olhos semiabertos vigiam a moça impunemente, pois ela me ignora, atenta apenas aos acordes da canção. Talvez eu devesse ir embora, afinal já bebi demais; talvez eu estivesse alucinando diante daquela balada antiga e daquele inusitado ritual; talvez nem houvesse moça, nem “Patience”; talvez nada faça sentido, mas, há muito tempo, cansei-me de buscar sentidos. Por isso, talvez, eu fiquei.
Por mais que a moça me pareça uma completa estranha, sinto que estamos conectados – talvez ambos ignorássemos os versos em idioma estrangeiro e só nos guiássemos pelo ritmo melancólico; talvez os nossos passados tivessem o mesmo prazer sádico de não passarem completamente e nos fazerem sempre olharmos pra trás; talvez não houvesse moça, nem “Patience”, nem conexão, nem talvez e eu simplesmente fiquei ali estagnado, altamente alcoolizado, sem saber o que fazer.
Então a música acaba; a jukebox exige mais fichas que a moça não lhe dá. Ela acorda de seu frenesi e, de repente, me olha com aquele ar de criança brincalhona surpreendida por um adulto taciturno e intrometido. O estranhamento e a surpresa são mútuos, mas duram poucos segundos. Uma poeira imperceptível passa entre nós, então uma luz bonita e triste ilumina seu rosto e ela me sorri.
- Vamos embora, Artur, é hora de partir.
Talvez não tivesse que rimar; talvez fosse apenas (d)efeito de muito álcool no sangue; talvez eu escrevesse tudo isso num monte de guardanapos enquanto me sentia cada vez mais sozinho e embriagado; talvez “Patience” continuasse na jukebox; talvez empregasse mal os tempos verbais; talvez não houvesse nada entre mim e a moça; talvez jamais saiba dizer se, algum dia, realmente houve tempo, música, moça e talvez .
Só sei que pego nas mãos dela decidido e algo hesitante entre mim e ela chora enquanto partimos. Pra onde vamos agora, eu não sei...