domingo, 31 de março de 2019

Solidões Memorialistas Compartilhadas: Leticia de Lima Gonçalves nos tempos do feijão com farinha e jiló


Hoje, após um segundo turno quase impecável (sou vascaíno, mas não devemos omitir a realidade), o Flamengo conquistou a Taça Rio, parte do Campeonato Carioca de Futebol de 2019. Isso me fez lembrar-me de uma querida escritoramiga – ex-escritoraluna da Escola Municipal Alcino Francisco da Silva, onde leciono – fanática pelo Flamengo e também – quando se mostrava disposta – supertalentosa na escrita, a mais que fodástica artistamiga teresopolitana Leticia de Lima Gonçalves.
Voltando ao jogo de hoje, o Vasco ficou devendo um melhor desempenho nessa segunda fase do campeonato – e, voltando a mim e Leticia – da mesma forma como devo esta postagem há anos para a querida escritoramiga flamenguista. Trago hoje um dos grandes textos de memórias escrito por Leticia de Lima Gonçalves. Na época, sua dedicação às atividades escolares oscilavam bastante e, por isso, a importância maior do texto com o qual compartilho minhas solidões poéticas com Leticia: esse texto de memórias, derivado de uma entrevista dela com seu pai, foi um desafio – ela dificilmente antes tomava coragem para fazer as redações – e um ponto de virada para a talentosa escritoramiga – ela se dedicou, venceu a hesitação inicial, fez uma primorosa entrevista, escreveu, reescreveu, suou liricamente, esmerou seu texto ao máximo para que me entregasse orgulhosamente sua cristalizada versão final, que trago hoje ao blog.
Confesso vergonhosamente devo essa solidão compartilhada à escritoramiga e aos amigos leitores há tempos (arrumar a papelada de casa ontem auxiliou no meu reencontro com o texto em meio à babel de arquivos). Bem, na falta de desculpas melhores, só posso dizer o cretino “sinto muito, mas antes tarde do que nunca” rs. Outra confissão: me amarro nestes textos em que nos passamos por outra pessoa que nós conhecemos (já escrevi um texto desse tipo em homenagem à minha mãe, texto este já publicado em jornal e aqui no blog), traz aquela sensação fraterna, de se dispor a passar pelo outro, sentir como o outro sente, como os amigos leitores fazem quando se passam pelos personagens cujas peripécias são lidas vorazmente.
Viajemos, amigos leitores, através do formidável narrador em primeira pessoa da escritoramiga Leticia de Lima Gonçalves dos tempos do feijão com farinha e jiló até os dias atuais, refletindo o antes, o hoje e sonhando com o promissor depois.

Dos tempos do feijão com farinha e jiló

Eu me lembro como se fosse hoje: estava numa mesa comendo feijão com farinha e jiló. Na minha época, não tinha variedade de comida como tenho hoje em dia; eu só comia feijão com farinha e jiló. Era ruim, mas tinha que comer, senão apanhava. Minha mãe ficava perto de mim e de meus irmãos nos vigiando com uma vara de marmelo. Uma vez, meu irmão mais novo apanhou muito, nunca mais deixou de comer as refeições que meus pais ofereciam.
Eu me lembro de que trabalhava desde os 6 anos de idade na roça. Ia pra escola e, quando voltava, tinha de trabalhar, colher feijão, catar jiló, etc.
Hoje tenho uma família que eu amo, apesar de todos os problemas. Minha filha de 15 anos é meio desobediente, não cumpre com parte das tarefas de casa. Minha esposa vive brigando com ela e eu não posso fazer nada, porque é coisa de mãe e filha.
Apesar de seu comportamento complicado, minha filha me ajuda no trabalho, tanto que até dei uma parte da lavoura para ela cuidar. Assim, ela faz seu dinheiro e está juntando para comprar o que desejar.
Hoje moro em um lugar calmo, tranquilo. As pessoas são amigas, e é um lugar onde todo mundo é parente. Tenho um terreno que é só meu, da minha filha e da minha esposa, sempre foi assim. Tenho um sogro enviado por Deus e uma sogra abençoada que me ajudaram muito quando eu mais precisava.
Atualmente me considero um bom cidadão, tenho minha lavoura de tomate, couve e alface para fazer dinheiro e pagar as contas de luz, pagar o que eu devo e por aí vai minha vida, bem à frente dos tempos do feijão com farinha e jiló.
(Texto de memórias escrito por Leticia de Lima Gonçalves, 
baseada em entrevista feita com seu pai.)



quinta-feira, 21 de março de 2019

No Dia Mundial da Poesia, deixo meus olhos leitores penetrarem (e serem penetrados) pelo lirismo de Jardim


Hoje, dia 21 de março, como bem me lembrou o super mais que fodástico poetamigo Sergio Almeida, mais conhecido como Jardim, comemoramos o Dia Mundial da Poesia. Diante de data tão especial, nada mais apropriado que compartilhar minhas solidões poéticas na postagem de hoje com uma pequena (pequena, no sentido de quantidade, de leitura com desejo de ler mais; imensa, em seu esbanjamento lírico, grandiosa em sua plenitude e – principalmente nos dois últimos – sensualidade) seleção de 3 poemas do próprio  super mais que fodástico poetamigo Jardim.
O super mais que fodástico poetamigo Sergio Almeida, o Jardim, é um artistamigo multipremiado em diversos certames literários e tem vários livros publicados (“Filhas do Segundo Sexo”,  “Crônicas do amor impossível”, “Amores possíveis”, “Diário do desassossego”, “Dois” e “Faraway” – recomendo que acompanhem e obtenham mais informações sobre as obras primas do super poetamigo no blog pessoal dele; eis o link: https://sergioprof.wordpress.com  ).
Comemoremos esta marcante data deixando nossos olhos leitores penetrarem (e serem penetrados) pelos mais que fodáticos poemas de Jardim!

trago na alma o inventário das andanças,
palavras proferidas no deserto das planícies
que percorrem um tempo incontestável.
entre as árvores e as montanhas, a história,
o milho semeado e colhido.
a cana, o cacau, o tabaco, o trigo, o café.
entre serras e pampas o voo das mariposas
é uma prece debaixo dos olhos do deus católico.
ouço tuas sílabas de encanto.
américa.

desfilo meu enredo andarilho,
passo a passo rumo à alvorada.
quantas trilhas, quantos limites!
a travessia ao anoitecer no titicaca,
as cordilheiras dos andes aquecidas pelo sol
e a noite debaixo do céu de macchu picchu.
as águas de el nino vem inundar o passado
e tudo chega como um oceano de saudade
por todos los amigos e los hermanos.
américa.

doze de outubro,
mil quatrocentos e noventa e dois.
passos a ecoar pelos becos seculares
de quito e de la paz.
ainda não ouvi tudo quanto queria ouvir,
derramo o cântaro de minhas lástimas
sobre tuas feridas abertas.

lembro-me da fascinação do teu corpo
nascido da utopia, cenário manchado pelo suor
de negros homens no canavial
ou amarrados ao tronco, a chibata a ecoar
em suas costas, os campos semeados
e a esperança tatuada em tua pele.
o perfume da terra cultivada,
nos seus frutos germinava o encantamento
e nossas pálpebras se abriam para um novo dia.

américa que vivi,
entre risos e o pranto, o esplendor de tenochtitlan.
a américa primeira,
asteca, maia, inca e guarani,
a américa mãe,
sangrada por cortez e pizarro.
a pátria de todos nós,
a heroica pátria de bolívar
pilhada e consumida
pelas garras dos tiranos.
vi tuas casamatas abertas
e as densas trevas que caíram sobre ti.
vieram os anos de chumbo,
os labirintos de dor e as atrocidades.
na penumbra morreram todas as flores.

canto a liberdade asfixiada,
pronunciando nomes como médici, somoza, fidel, pinochet
e seus rastros homicidas naqueles dias amordaçados.
canto as valas comuns,
as ossadas do atacama,
os esqueletos do araguaia.
meu réquiem é para os desaparecidos,
meu canto é para os filhos da ditadura,
para os sobreviventes e suas cicatrizes,
para as viúvas e os órfãos.
para las madres de plaza de mayo
e suas lágrimas perenes.

séculos se passaram
e tuas chagas ainda emergem nos jornais.
malditos condores,
malditos generais.
canto por ti, américa, por tuas favelas,
por teus bairros miseráveis e por teus palácios,
por teu brilho ofuscado pela tortura.
américa de tantos massacres e cadafalsos,
ouço-te na voz melancólica das metralhadoras
derrubando o ultimo jagunço em canudos.
uma américa de martírios,
estrangulada em atahualpa,
esquartejada em cusco,
sacrificada em che guevara.
executada em cada prisão,
e nos rituais da morte do dói-codi.

tanto luto, tanta memória
e nenhum perdão,
um áspero clarim ao entardecer
distante, tão distante,
ressoa nos planaltos e nas cordilheiras
e hoje, em busca de si mesma
ainda abrigas o mesmo fragmentado coração.

o que te aguarda, américa?
os anos se foram, inquietantes e atrozes
restando um mundo com seu clamor colonizado.
busco em teu íntimo silêncio,
por tudo aquilo que perdemos.
meu pensamento numa oração e num lampejo,
viaja ao eldorado,
lá, muito além do amazonas, um lugar deslumbrante.
muito além do aconcágua
muito além da sombra de montezuma
e dos acordos de tordesilhas.

falo em nome desta américa indígena agonizante,
falo em nome de uma américa proletária
em nome do ouro e da prata ensanguentados.
das roupas gastas dos camponeses sobre a terra árida
e a resignação de um povo com sua misteriosa mudez,
seu grito contido que em algum lugar se perdeu,
sua fome urgente e seu sangue.
suas praças onde se erguem as estátuas dos seus heróis
falo das barriadas,
da miséria, da varíola e do frio,
falo em nome dos meninos que vendem balas nos sinais.
falo por todo discurso subtraído,
reprimido pelos fuzis, detido, interrogado, ameaçado
falo da marca da tirania encravada nas paredes
falo de uma era de desterros e torturas,
do terror uniformizado.

tenho os punhos abertos e o peito vazio.
em meu gesto de amor desesperado.
meu olhar descalço e peregrino
assistiu a nostalgia do exílio e dos encarcerados.
dos párias, dos bêbados, dos vagabundos.

caminhando pela terrível solidão branca das ruas,
pelo destino oculto das metrópoles
abre-se o itinerário clandestino das minhas pegadas
por entre as trincheiras escavadas dos meus sonhos.




beijo as pétalas da rosa.
e na minha boca
o meu amor goza.




aos poucos fui te descobrindo.
na madrugada fria como um cadáver
o aroma dos desejos.
mãos e olhos fechados,
nossos pés se encontraram
sob os lençóis.

senti teu desejo,
provei o sabor de prazer e pecado
dos teus lábios, descobri tua pele,
teus seios, tuas coxas
ao encontro das minhas.

aos poucos fui te descobrindo.
minha boca desesperada
buscava tua boca.
tua entrada molhada,
apertada, faminta;
carne contra carne.

nossos corpos se cruzaram,
descruzaram, se enroscaram
se entrelaçaram, se possuíram.
lambi o suor que te banha
e escorre de cada poro teu.

aos poucos fui te descobrindo.
mordo teus lábios,
o lamber das línguas
na sinfonia dos gemidos.
delicadezas pintaram
de arrepios as paredes,
os lençóis e as cortinas.

teu sexo úmido procurando
por meu sexo duro de desejo.
e no abismo de tuas coxas
inundei teu âmago
com o doce do meu leite.



sexta-feira, 8 de março de 2019

Solidões Compartilhadas Feminilíricas: As Mulheres de (em) Laryssa Fernandes


Depois de tanto tempo meio sumido (como quase sempre) do blog, hoje trago outra postagem, além da anterior, na qual homenageio as mais que fodásticas escritoras e personagens femininas. O motivo de fazer duas postagens ao invés de manter a tradição e postar apenas uma por dia? Recebi uma contribuição lírica vigorosa da superpoetamiga teresopolitana Laryssa Fernandes, também homenageando as mulheres (enviado logo depois da estreia dela aqui no blog há 2 postagens atrás) e, como afirmei anteriormente, o Dia Internacional da Mulher é superespecial e é uma data que merece ser comemorada quebrando a tradição de uma única postagem por dia.
Por isso, hoje orgulhosamente compartilho minhas solidões poéticas mais uma vez com mais um maravilhoso poema de Laryssa Fernandes.
Bem vindos ao universo lírico feminino de Laryssa Fernandes, amigos leitores!
E, mais uma vez, desejo-lhes Boa Leitura e Arte e Feminilirismo Sempre!

Mulheres

Nós sangramos
Nós queimamos
Nós choramos quando apanhamos

Somos humilhadas
Somos ofendidas
Somos violentadas
Muitas vezes somos agredidas

Somos consideradas como sexo frágil
Mas somos fortes
Somos muito fortes
Porque aguentamos o que passamos

Somos mulheres!
Laryssa Fernandes
(28/02/2019)



Contra o feminicídio e a favor do Feminilirismo: Canção Mulher


Hoje é Dia Internacional da Mulher e o poeta-blogueiro que vos escreve não poderia deixar essa data passar silenciada, apesar de minhas visitas cada vez mais esporádicas neste espaço lírico-virtual. Vivemos tempos sombrios de invocações do, outrora sorumbático, machismo, do aumento das violências domésticas e, consequentemente, dos mais altos índices de feminicídio, e, nós, escritores líricos, filhos de Safo, não podemos deixar de cantar as Musas que regem nossa trajetória poética: a Arte vive e sobrevive graças ao sopro divino dElas, a poesia essência são Elas.
Quadro "Mulheres Facetadas",
de Di Cavalcanti
Por isso, trago um poema inédito meu, homenagem feminilírica, uma espécie de esposa-amante-amiga-rainha de outro poema meu chamado “Biblioteca de Babel”, onde exponho algumas de minhas influências literárias e gostos e paixões por Mestres Deusas Escritoras e Eternas Personagens Femininas.
Boa Leitura! Arte e Feminilirismo Sempre!













Canção Mulher 
(ou A Canção, ou A, Canção, ou A: Canção)

Sou Safo entre o precipício de Eros e os desejos de Lesbos,
criando um novo estilo, gestando o gênio do gênero lírico
nos mares impulsivos dos amores lascivos
e os perigos serenos dos estóicos rochedos.
Sou Carta Portuguesa, corajosa denúncia patrícia feminina
do abandono e desespero
contra a covardia masculina, estrangeira e fardada.
Sou Orgulho e Preconceito, Jane Austen tecendo novos enredos
para além do seu tempo.
Sou Bronté uivando a favor dos ventos nos morros
que enterram em silêncio os corpos das vítimas dos amores violentos
(as unhas da fantasma violentada marcará os braços másculos e grosseiros
na feminina madrugada).
Sou Flor bela e espancada oferecendo espinhos macios
em canções sublimes e dilaceradas.
Sou Cecília anjo menina de asa ferida, mas infinita.
Sou cor de Coral, do Colar de Carol, Comadre de Cora Coralina.
Sou verdes mares, Iracema apaixonada, mãe da América colonizada,
amamentando os filhos da dor, encarando a morte com gestos de amor.
Sou Capitu sem culpa e ainda culpada,
onda ora sincera, ora dissimulada,
que te arrasta quando encaras meus olhos de sedutora ressaca.
Sou unha pintada, frágil, mas sempre afiada.
Sou musa atrevida e recatada.
Sou minha, sou tua, sou única, sou inconstância consolidada.
Sou os seios que teus lábios bebês procuram sedentos,
da vida a abstrata vontade, sou de todos o primeiro beijo concreto na carne.
Sou aquela que aquelas e aqueles procuram no entardecer do desejo,
sou essa que apontam o dedo com desprezo ou zelo,
sou esta que convive com teus anseios e receios,
sou ela contra elos de eles cheios de preconceitos,
sou a feminina ampulheta contra o machismo bravio do arenoso tempo.
Sou a poesia do poema, a lira do canto, a narrativa do conto,
sou a lida diária, a crônica crônica duramente afável,
sou a fantasia rara, da mais vigente à mais improvável,
sou A, contra o O predominante da língua masculinizada inabalável,
sou A, Mulher, definida, definitiva, mesmo que mutável.




Meu filho-poema selecionado na Copa do Mundo das Contradições: CarnaQatar

Dia de estreia da teoricamente favorita Seleção Brasileira Masculina de Futebol na Copa do Mundo 2022, no Qatar, e um Brasil, ainda fragiliz...