sábado, 15 de setembro de 2018

Prosa premiada: Despertar atrasado


Quem nunca dormiu demais e perdeu a hora do serviço em alguma fase da vida? Quem nunca chegou atrasado (as postagens aqui então... nem se fala rs)?
Ontem, falei de um poema premiado neste ano; hoje trago a crônica, classificada e premiada como conto, chamada “Despertar atrasado” (sim, essa prosa fala daquele momento conturbado, pesadelo de todo trabalhador que tenta seguir uma rotina honrada e, por algum lapso sem grandes motivações, tropeça em Cronos por ficar muito tempo no reino de Morfeu).
Na quinta-feira, dia 26 de Julho, participei da festa de encerramento do Concurso de Obras Literárias do Clube dos Funcionários em Volta Redonda/RJ. Duas obras minhas foram premiadas, ambas em sétimo lugar, cada uma em sua categoria: "Despertar atrasado" (em contos) e "Balada de sol para o nublado em teus olhos" (poesia). Foi uma noite festiva e lírica, em companhia de artistamigos e familiares. No retorno à casa de minha tia Yara, mamãe, tia Yara, meu primo Charles e eu paramos em um bar para bebermorarmos - foi nesse momento que li o 'conto' (considero-o uma crônica, pelo valor episódico cotidiano, mas, como foi vencedor como outro gênero, aceito a oferenda sem pestanejar) premiado, cujo fragmento final vocês podem assistir e ouvir no vídeo compartilhado aqui.
Aproveito também o momento (semana) de menor agitação cultural para finalmente postar a prosa  premiada na íntegra para que todos possam ler, curtir, analisar, etc.
Boa leitura e Arte Sempre, amigos leitores!

Despertar atrasado

Os raios de sol gritam em minha janela e ferem meus olhos recém-despertos.  A fúria com que a claridade dança na vidraça me informa que alguma coisa está muito errada. Um leve desespero beija meus primeiros pensamentos, então olho para o relógio despertador que não me despertou: 8 horas e 40 minutos, perdi a hora do trabalho...  O leve desespero agora é um grande pesadelo, pior que qualquer outro pesadelo que já tive, pois é real: eu perdi a hora e não existe, nesse mundo, nenhuma máquina do tempo que recupere esse tempo perdido.
                Levanto-me completamente desolado – não ativei o alarme do despertador? Não, isso não justifica, afinal, independente dele, sempre acordei ao menos mais cedo.  Estou muito cansado? Não, isso não justifica, afinal, todas as pessoas vivem períodos de enorme cansaço. Não há desculpa, não há explicação, é como viver um momento ardente e o corpo não corresponder, tentar buscar água num ambiente deserto e sentir a derrota, a angústia, a sede e não ter o que fazer pra aplacar todo essa tempestade num ambiente árido.
Na casa do vizinho, o rádio, no volume alto, toca as canções do momento e o locutor, de vez em quando, informa as horas, o tempo perdido cada vez mais perdido, ah, e eu tão perdido quanto. Na estrada, próxima a minha casa, o barulho dos carros me informa que o mundo lá fora segue pontualmente seu destino; na oficina mecânica, ao lado de minha residência, ninguém parece estar atrasado; são nesses momentos que nos percebemos mais poeira do universo – o mundo segue aceleradamente a sua rota e apenas eu estou atrasado.
O tempo escorre pelas mãos e não há tempo que volte, amor. Os versos da canção de Lulu Santos escorrem em meus ouvidos, carentes da palavra final, afinal, neste momento, não há amor, apenas uma profunda dor de vazio. Sinto vergonha e raiva de mim mesmo e a única coisa que consigo pensar é como posso me ajoelhar pro mundo e pra mim mesmo e pedir desculpas pelos erros que nem sei como cometi. No rádio da casa do vizinho, escapa o verso de outra canção, “deixe o agora pra depois”, acho que é Victor e Léo, mas o que fazer quando o agora acordou depois?
Recolho os cacos de mim mesmo, adiantando o serviço que deixei pra casa, mas a inglória acompanha meus passos, o sol, cada vez mais radiante, parece me humilhar. Só me resta esquecer o inesquecível, conviver mais uma vez com o insustentável, seguir em frente, acompanhado do tempo perdido que me arrasta pra trás.
Dois passos pra frente, um minuto do tempo perdido me puxando pra trás. É lento o avanço, mas, depois de muito andar, talvez esse tempo que perdi pare de me puxar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Meu filho-poema selecionado na Copa do Mundo das Contradições: CarnaQatar

Dia de estreia da teoricamente favorita Seleção Brasileira Masculina de Futebol na Copa do Mundo 2022, no Qatar, e um Brasil, ainda fragiliz...