quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Meu Bate-Bola Fictício Premiado: Miserável Futebol Clube

Ontem, começou a primeira rodada da tradicional Taça Guanabara (com um empate  de 2 a 2 entre Botafogo e Portuguesa), fase do Campeonato Carioca 2018 na qual os clubes considerados ‘maiores’ (Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo) e os clubes ‘pequenos’ melhores classificados no campeonato do ano passado participam com outros dois ‘pequenos’ classificados na primeira fase, Tal fato me fez lembrar do meu conto “Miserável Futebol Clube”, que posto hoje no blog.
Livremente inspirado na matéria “O jogo dos miseráveis”, de Flávio Adauto, publicada na Folha de São Paulo, em 31/08/1975 (a reportagem inspiradora, que recebeu o Prêmio Esso de Informação da época, mostrava que mais de 7.000 jogadores de futebol, em 21 Estados, viviam sem direitos previdenciários, apesar de pagarem impostos), “Miserável Futebol Clube” narra as desventuras do universo futebolístico em 1975. Com este conto, conquistei a honraria de “Destaque Sul Fluminense” no Prêmio Maria José Maldonado de Literatura 2017, realizado pela Academia Volta-Redondense de Letras.
Esse meu conto premiado também pode ser encontrado na Coletânea Digital “Prêmio Maria José Maldonado de Literatura 2017 - Antologia de Textos Premiados”, que pode ser baixada no site da Academia Volta-Redondense de Letras (segue o link: https://www.avl.org.br/livros ).
Espero que gostem, amigos leitores! Boa leitura e Arte Sempre!

Miserável Futebol Clube

- Intão, fessô?... O que o dotô disse? Eu vô ficá bão, né?
O rapaz finalmente acorda e me dirige a palavra. Encontro-me de frente para o rapaz, de 20 atléticos anos, uniforme sujo, corpo completamente suado, a respiração ainda arfante, no ritmo do jogo que pra ele encerrou bem antes da hora. Em contraste ao porte extremamente saudável do rapaz, o corpo exausto, atirado numa maca improvisada, sugere uma implacável derrota, a perna esquerda irremediavelmente fraturada. Estamos sozinhos no vestiário, os outros jogadores estavam muito apreensivos com a cena e pedi que saíssem. A tragédia já trazia drama demais para mim e para o garoto.
Retomo comigo mesmo os lances anteriores: o estádio pequeno, mas cheio de olheiros, jogo duro, placar empacado no zero a zero, o garoto quis mostrar serviço; extremamente habilidoso, craque nato, possível reforço de algum time de maior expressão, ele driblou o zagueiro e já partia para o gol e para glória, até o outro zagueiro dar aquele carrinho criminoso por trás. Apito do juiz, pênalti marcado, zagueiro adversário expulso, confusão, mesmo os culpados querem ter razão e o garoto ali, desmaiado, inconsciente da penalidade, fratura mais que exposta, chamo a atenção do capitão da nossa equipe – vai ver o garoto, pô! -, corre-corre, cadê o médico, caraca!, maca vagabunda, enfermeiros despreparados, “é o que deu pra arrumar”, afirma o dirigente pão-duro, alguns jogadores finalmente se desligam do frenesi do jogo – o camisa 10 tá mal, professor! Será que sai dessa? -, respondo que não sei. E agora o garoto me encara, busca desesperadamente uma esperança impossível em meu olhar falsamente firme.
Queria lhe dizer: já vi esse filme, rapaz, você é mais um que vai pro chuveiro pra sempre e logo, logo perceberá que nessa profissão não temos nenhum seguro, o governo planeja, o presidente da República Ernesto Geisel diz que apoia uma medida de assistência ao atleta profissional, diz que vai trazer uma solução pro desamparo da gente, mas até agora tudo promessa, somos artistas ilustres de um circo de luzes sem brilho e nesse miserável picadeiro da Confederação Brasileira de Desportos ainda não há planejamento, só desorganização, você está perdido, irremediavelmente perdido. Penso mil coisas em breves segundos, mas até o momento não lhe respondi nada, o garoto quer uma resposta, Otávio, vai jogar um papo furado ou vai dizer a verdade? Desvio o olhar, dou de cara com o calendário da Coca-Cola, com os dizeres “Isso é que é” ao lado da marca do refrigerante, na parede do vestiário – sexta-feira, 13 de junho de 1975, eu sabia que pôr o time pra jogar numa data dessa ia ser de lascar -, finalmente respondo, opto pelo esquema mais covarde, retrancado:
- Vamos ver, garoto, vamos ver...
Dá para perceber no semblante dele a decepção com minha resposta. A face bronzeada e iluminada como se um sol sempre traçasse um sorriso em seu rosto, o jeito brincalhão, sempre tentando manter o ânimo dos colegas, apesar dos frequentes atrasos de salário, toda elegância feliz do jovem se desfaz em uma ameaça de nebuloso pranto. Fraturado, esse será o nome do garoto agora, seu nome de batismo é passado, esquecimento, nem o mais fiel integrante de nossa humilde torcida se lembrará da breve passagem do rapaz pelo nosso pequeno clube. Mas o garoto não desiste, finge que não manja ou realmente não manja mesmo.
- Mas, fessor... é só dá um “taime”, né...
-  A fratura é séria, Beto...– desta vez, sai sem pausa. – O diagnóstico do médico, apesar do exame não ter sido completo, não é nada animador, rapaz. Ele te sedou e foi buscar a equipe médica, talvez você ainda não tenha manjado, sua perna esquerda está jogada pro lado, quebrada, daqui de onde vejo é como se ela estivesse fora do seu corpo. Acho que você vai ter que começar a pensar num outro meio de seguir em frente fora dos campos. Sou experiente nisso, garoto, sinto muito, mas acho que você vai ter que pendurar as chuteiras... – eu mesmo me interrompo, aterrorizado com meu surto de sinceridade. Deve ser cansaço, fico noites sem dormir e estou velho demais pra prosseguir nessa carreira, nem o bicho do jogo do mês passado os desgraçados me pagaram. Putz... Mas sou como o garoto... o que vamos fazer da vida sem a única coisa que nos prestamos a fazer? Aposentadoria não temos, apesar de pagarmos aquela porcaria de INPS. Como sobreviver sem esse maldito futebol? – Me desculpe, Bebeto, estou sendo brusco com você, rapaz...
- Brus...quê, fessô?
Ah, meu Deus, o que vai ser desse moleque? Não deve ter nem o primário completo; uma vez que pedi aos jogadores que anotassem frases de incentivo ao lateral Jorginho, que ficaria lesionado por uns 3 meses, esse garoto demorou um século para anotar um “Milhoras, amigu” e mais meio século para assinar o próprio nome. Tive que dar uma bronca pra acelerar o processo. Ideia imbecil também aquela que eu tive... é, realmente preciso me aposentar, mesmo sem aposentadoria pra tirar.
- Eu quis dizer: me desculpe se fui grosso, Bebeto. – me esforço pela segunda vez para não esquecer seu nome, não lhe adiantar o desamparo ao qual o garoto vai ser atirado.
- ‘tendi, fessô!
Não sei porque esses moleques me chamam de professor, tomara que essa moda não pegue em outros times; não tenho nada demais pra ensinar a esses garotos, necessitam é de escola, alfabetização, um professor de verdade. Mas o fascínio com a bola gosta de flertar com a ignorância. A Loteria se aproveita dessa ingenuidade para faturar em cima desses pobres coitados e não dar nem um bicho minguado pra eles. Nem pra mim. Mal o Conselho Nacional de Desportos fatura uma merreca do montante fabuloso que a Loteria arrecada.
- Me’rmão tá no Framengo, fessor, tá de reserva, mas é fera e já ganha muito mais cruzero qui eu por mês. Quem sabe dispois de mim recuperá vô pra lá...
Deve ser uma espécie de trauma, o garoto parece estar em permanente delírio. Acabou, Bebeto! Agora é só desgraça: primeiro Fraturado, depois Desempregado, caçando bico, sem outro ofício conhecido fora das quatro linhas. Meu Deus, ele mal ouviu a última frase que eu lhe falei! Ele me encara mais uma vez, contorcendo um sorriso dolorido, seus olhos brilham. Me repito, de volta à retranca:
 - Vamos ver, garoto, vamos ver...
Miserável Futebol Clube... somos hábeis atletas do jogo dos miseráveis...
Ouço ruídos de alguém entrando no vestiário. É o doutor com a equipe da ambulância. Ao lado deles, Silvio, o vice-presidente do nosso clube, consternado. Pelo jeito, o nosso presidente nem quis dar as caras pelo vestiário hoje. Seja como for, aceno para eles e disfarço o alívio de vê-los se aproximando; os breves minutos com o garoto tiveram o peso de uma eternidade.
- O médico já está chegando, garoto. Vou indo... Fica em paz e melhoras, rapaz.
- Fessô...
Mais eternidade pesando sobre meus ombros cansados desse jogo truncado. Forço uma paciência que há tempos eu já perdera:
- Pois não, garoto...
- E o pênalti? O juiz marcô, né? Nosso ponta-direita qui bateu? Foi gol?
Sorrio. Como esse garoto ainda consegue me fazer sorrir em meio a toda essa tragédia? Deve ser dom, deve ser...
- Sim, o juiz marcou e foi o Mazão mesmo que bateu. E sim, garoto, foi gol, goleiro prum lado e bola pro outro. Foi gol graças a você, garoto, Parabéns!
Bebeto sorri. Cumprimento o médico, sua equipe e o Silvio. Antes de sair, cochicho nos ouvidos do último:
- Silvio, só te peço uma coisa: não conta pra ele que, depois do pênalti, o time adversário fez dois gols e virou o jogo, por favor. Se o garoto perguntar o placar, muda de assunto, finge que não ouviu. Deixa o garoto curtir, pelo menos por alguns segundos, a vitória efêmera.
Silvio dá um leve tapinha nas minhas costas, em sinal de concordância com o meu pedido. O clube não nos paga devidamente, mas, pelo menos, finge ser simpático aos nossos desejos mais simples.
Dirijo-me até a saída. Será que passarei a noite sem dormir mais uma vez?




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Meu filho-poema selecionado na Copa do Mundo das Contradições: CarnaQatar

Dia de estreia da teoricamente favorita Seleção Brasileira Masculina de Futebol na Copa do Mundo 2022, no Qatar, e um Brasil, ainda fragiliz...