quinta-feira, 28 de junho de 2012

Maluca lucidez: Um tolo de ouro para o ouro de tolo

Hoje, às oito horas da manhã, Raul Seixas faria 67 anos. Conhecido como maluco beleza, apelidado de "contestador e místico", o roqueiro baiano nunca foi muito levado a sério em suas críticas à sociedade ditatorial e pós-ditatorial (o que não significa uma sociedade mais livre, e sim uma sociedade que ainda traz ranços de seu antigo regime). Quase sempre, quando a mídia lembra de Raul Seixas, revemos sucessos como "Maluco Beleza", "Al Capone", "Sociedade Alternativa", etc. São raros os noticiários que relembram do Raul Seixas mais revoltado, com sua séria e sagaz "Ouro de Tolo", música de conteúdo quase autobiográfico, mas que debocha da Ditadura e do suposto "Milagre Econômico". São raros os que não imaginam Raul apenas como um cara meio louco, que não deve ser levado muito a sério. E assim permanecemos "no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar" (acrescente aí um notebook e internet gratuita ou paga em suaves prestações e a letra nos retorna ainda mais cruel e contemporânea). Vivemos como há 10 mil anos atrás e ainda achamos que maluco era o Raul, morto após uma grande dose de bebidas alcoólicas e poucos cuidados com a diabete que o tolhia. O disco voador buscou Raul; tirou-o desse mundo louco, elevou o poeta louco às galáxias da lucidez, enquanto permanecemos aqui estagnados, cada vez mais baixos, descendo, descendo até o chão. E Raulzito, antes de partir, avisou-nos da ridícula condição e submissão humana diante de tanto ouro de tolo, diante de tanto consumismo, tantos milagres econômicos, tanta estupidez. Mas não o ouvimos; é mais confortável rotular o lúcido de louco e interná-lo em nossa própria insensatez. Em homenagem aos malucos belezas de letras lúcidas feias, posto a minha (sub)versão ao Ouro de Tolo de Raul Seixas: 


Tolo de ouro


Eu devia estar no zoológico apontando o dedo médio
Para os malditos cidadãos respeitáveis
Que, com a boca cheia de carne proletária entre os dentes,
Sorriem pra mim, escondendo o horror
Por minha selvageria pacífica.
Eu devia estar acorrentado para que
Ficasse mais claro quem é o escravo e quem é o rei
E devia estar triste, insatisfeito
Por receber um salário de fome
E viver a duas horas da violência da cidade maravilhosa,
Quando, na verdade, queria mesmo era voltar pra paz sem graça da minha roça.
Eu devia censurar cada sorriso, cada gozo
Daquelas esmolas de fugaz alegria numa vida permanentemente sofrida,
Mas eu prefiro continuar sendo o mesmo canalha
Que, mesmo castigado, senta, relaxa e goza.
Eu devia ranger meus dentes, não me dar por vencido,
Ter uma grande crise, mas confesso
Acomodado que eu estou ‘fazendo o meu trabalho’,
Convivendo com as ilusões dessa insatisfação feliz
E agora eu me ignoro, rá, rá, eu só sei sorrir!
Eu tenho um monte de recados bonitos pra te postar
E eu não posso te escrever sobre coisas tristes, não quero ser bloqueado.
E, por mais que me doa sorrir, eu tenho conseguido
Mil amigos pra me curtir no alegre reformatório
Dos hipócritas antenados.
Ah, mas que sujeito hábil sou eu
Que consegue que todo mundo me ache engraçado
Palhaço, amigo, safado, boçal, ah, eu tenho milhões de fãs
E eu curto tudo isso, de mim mesmo um falsário
Quando bastava me olhar no espelho
E me sentir um grandessíssimo calhorda,
Mais um internauta fingido, autohackeado
Que só compartilha raivas populares na rede virtual
Ah, e tu ainda acreditas que sou um agitador social!
És leitor superficial que não vê que cão que muito late  
É cachorro vira-latas com medo de confronto real.  
Eu devia estar no ventilador jogando meus excrementos,
Mas só trago a revolta calada, aprisionada em meu ventre,
Esperando outro porre chegar
Pra cagar minhas verdades congestionadas
Nos banheiros sanitários sociais
E depois, na cama calada de minha ressaca, mais uma vez reviver
As cenas trágicas e escandalosas de mais um bêbado perdedor.

Um comentário:

  1. Sem palavras para descrever esse poema, Raulzito deve ter ficado lisonjeado lá nas estrelas, provavelmente vai até musicar pra tocar no rádio do seu disco voador!

    ResponderExcluir

Meu filho-poema selecionado na Copa do Mundo das Contradições: CarnaQatar

Dia de estreia da teoricamente favorita Seleção Brasileira Masculina de Futebol na Copa do Mundo 2022, no Qatar, e um Brasil, ainda fragiliz...