quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Poemas da doce infância que não tive: "Aurora Inexistente" e "Os doces da tia Isabel"





Hoje minha postagem traz uma infância inusitada, nascida de um episódio matutino incidental e alimentada pelas traquinagens de meus eus líricos.
Durante a manhã, meu corpo insone vagava pela sala dos professores (parafraseando o poeta romântico Laurindo Rabelo, quem inventou aula de manhã cedo, foi espectro de homem; não viveu!), enquanto minha alma dormia sonhos incompletos. Isabel Costa, professora do pré-escolar, distribuía entre os professores que tinham filhos pequenos sacolas de doces em comemoração antecipada ao Dia das Crianças. Sonolento, eu apenas observava a cena, até que Isabel me incluiu no filme que eu preguiçosamente filmava em meus olhos:
- E você, Carlos, você tem criança em casa? (lembro-me da pergunta mais ou menos dessa forma; lembrando que nossas lembranças às vezes são forjadas pela memória que, às vezes, acrescenta novas palavras às nossas velhas histórias)
- Não, só eu mesmo. – brinquei, lembrando de Quintana: “sou um desenho de criança, corrigido por um louco”.
Isabel, leitora de meu blog, sorriu e, inocentemente, me apunhalou:
- Ah, você sabe que esses seus eus líricos não tem nada de criança!
Sorri em troca por fora, mas por dentro fiquei introspectivo, relembrando minha estranha infância – fui um molequinho gordinho, tímido e meio nerd; minha infância passou sem eu percebê-la plenamente; meus eus líricos realmente fogem dessa criança que não tive e raramente se dão a delírios pueris. Relembrei de um poema meio confissão que escrevi há tempos atrás: o “Aurora Inexistente”, paródia triste de vários poemas de exaltação de infâncias escritas por outros poetas (Casimiro de Abreu, Drummond, Manuel Bandeira, Mario Quintana e outros). O poema venceu concurso (ganhou 3.º lugar num Festival de Poesias da UNIP), foi publicado no livro “Eu e outras Províncias” (2008), virou quadro pintado pelo artista Ailton Batista, de Valença/RJ, e eternizou um ponto fraco de meus eus líricos: eles desconhecem infâncias, mal sabem brincar sem aquele sarcasmo comum do adulto. Em homenagem à primeira parte do episódio que conto hoje, “Aurora Inexistente” será visto abaixo como o primeiro poema que posto hoje.
Porém o episódio matutino não terminou dessa forma melancólica, com a minha introspecção e um sorriso amarelo para os olhos alheios. O diálogo citado ocorreu na entrada, no início do turno. Quando eu saía, professor insone, com a barba por fazer, consciente de minha falta de infância, ansioso para chegar em minha casa adulta e dormir o sono que não tive, mais uma vez, Isabel me chamou:
- Peraí, não vai levar sua sacola de doces?
Pronto! Se não havia criança em meus eus líricos até aquele momento, Isabel, mais uma vez inocentemente, me engravidou com um menino que não fui. Peguei a sacola de doces com um sentimento estranho, desconhecido: as mãos do eu homem seguravam os doces de um eu garoto que não havia, mas, que agora estava lá. Em troca do sacola de doces, prometi a Isabel um eu lírico infantil. E parti, ainda barbado por fora, muito criança por dentro. Pois bem, o segundo poema que posto hoje, inédito, foi batizado de “Os doces da tia Isabel”, em homenagem à musa inspiradora desse meu novo eu lírico “criança-no-corpo-de-um-louco” que tenta se manifestar desde a aurora inexistente. No poema, tentei descrever de forma lírica o conteúdo da sacola de doces que recebi de Isabel e aproveitei pra brincar e citar algumas canções de minha vaga infância (músicas da Xuxa, Trem da Alegria, etc).Tento assim iniciar a minha campanha não pelo amadurecimento de minha poesia, e sim em prol da infância que eles não tiveram. Como nos dizeres da sacola de doces que recebi de Isabel: “SALVE! O DIA DAS CRIANÇAS!”

Aurora inexistente

Minha infância não foi um poema...
Nenhuma aventura em roças esquecidas,
nenhum pássaro ferido por um estilingue possível,
nenhuma doença que console o tempo perdido,
nenhuma cidade pequena para ser lembrada,
nenhum amigo invisível, nenhuma história fantástica;
minha infância não foi um poema nem um conto de fadas.

Os laranjais faziam sombras aos outros meninos,
enquanto eu lia, lia feito uma traça
e os livros me comiam, me corrompiam.
Guardava brinquedos inacessíveis no sereno do egoísmo
e me mantinha intacto no veneno do meu silêncio.
As pipas subiam e sumiam na nuvem da minha indiferença
enquanto piões e bolas dormiam na poeira da minha desatenção.
Nem pesadelos, nem bicho papão:
o monstro era eu e minha solidão.

Agora o menino que não fui me procura
no quarto escuro e adulto do desassossego
e me oferece as suas mãos vazias para brincar
mas não posso... Então lhe agradeço
e lhe deixo, mais uma vez, sozinho e carente
enquanto bolas de gude líquidas
saltam de meus olhos mortos
e, cheias de uma saudade inexistente,
elas tocam o chão sem saída e indiferente
e rolam, rolam infinitamente...


Os doces da tia Isabel

Guarda-chuva de chocolate pras tempestades no céu da boca,
Pipocas super torradas pro corpo ganhar uma energia louca,
Geleia vermelha cheia de açúcar pra adoçar a minha vida,
Doce de leite direto da vaquinha pra não esquecer a roça querida,
A estrada de chão, longe do asfalto quente e perto do coração da gente.

Eita, deixa de ser besta que a porteira de lembranças é porreta!
Piuí, deixa o trem bão seguir nos túneis da minha emoção sem fim!

E ainda tem bananada docinha pra levantar a minha cansada autoestima
E ainda tem pirulito de mãozinha pra guiar a criança escondida na ponta da língua
E ainda tem suspiro profundo pra esse menino oculto soprar toda infância do mundo
E ainda tem barra de amendoim pra acordar o sonho feliz que adormece em meu jardim
E, nesse novo agora, não posso esquecer a abóbora que me adoça o entardecer da aurora!

Doce, doce, esse viver doce, muito além do fel...
Doce, doce, o mel está nos doces da tia Isabel!

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